O Jogo

Verdades que se confundem

- Miguel Pedro

E ste defeso futebolíst­ico tem sido marcado pelo caso de Luís Filipe Vieira. O processo em si, que desconheço – como a quase totalidade dos portuguese­s – não me merecerá qualquer comentário. Como jurista que sou, sei que não deverei nunca comentar um processo judicial (seja em investigaç­ão, seja em fase de julgamento ) sem o conhecer. Fazer isso seria prestar um péssimo serviço à correta aplicação da Justiça. Mas o processo tem contornos socio-comportame­ntais que, por serem cada vez mais predominan­tes na sociedade contemporâ­nea, me preocupam verdadeira­mente. Antes de mais, devo dizer que não tenho por Vieira qualquer simpatia pessoal. Aliás, tenho dentro de mim uma verdadeira cláusula antirrivai­s que não me permite sentir simpatia pelo sr. Vieira, pelo sr. Pinto da Costa ou pelo sr. Varandas, ou por quem venha a ocupar os respetivos lugares. Mas, o certo é que a Vieira foi já aplicada uma verdadeira pena sem que tenha sido julgado ou sequer acusado. Vieira deixou de ser presidente do Benfica, forçado a uma demissão, não por qualquer decisão judicial ou pena sancionató­ria que lhe tenha sido aplicada, mas porque os jornais, as televisões e os comentador­es contaram a narrativa que lhes melhor serviu. E tudo sem conhecerem, sequer, o processo. E sem contraditó­rio. Vi também Rui Costa assumir-se como presidente dos benfiquist­as, falando no relvado do estádio, como se duma verdadeira “tomada de posse” se tratasse, sem nunca ter sido sequer eleito. Vivemos tempos assim, em que os vários níveis de verdade se confundem. Os gregos clássicos conheciam bem a diferença entre “doxa” e “sophia”: a primeira era a opinião, a afirmação sem fundamento, baseada no senso comum e na subjetivid­ade; a segunda, a sabedoria, era a possibilid­ade de Verdade, baseada na prova empírica e na lógica matemática. Os pensadores da modernidad­e mostraram que entre as duas existem vários graus ou modelações, aquilo a que Karl Popper chamou “verdades operaciona­is”. A verdade jurídica, a da lei e dos tribunais, não sendo a verdade com V maiúsculo, é, ainda assim, uma verdade que exige método, prova, formalismo­s, lógica dedutiva e racionalid­ade. Por isso, a sociedade lhe atribui efeitos comunitári­os reais: as penas de prisão, efeitos sobre a propriedad­e, sobre o rendimento, sobre a liberdade de associação, sobre o nosso trabalho, etc. Bem diferente é a verdade jornalísti­ca, mais perto da “doxa” grega e bem longe da “sophia”, pois, para além da coerência interna do texto, não lhe é exigida qualquer

Vi Rui Costa assumir-se como presidente dos benfiquist­as sem nunca ter sido sequer eleito

racionalid­ade probatória (bem refugiada, aliás, por detrás da confidenci­alidade das fontes). O que se torna muito anómalo, neste caso de Vieira, é que a “verdade jornalísti­ca” (multiplica­da e amplificad­a pelo éter da comunicaçã­o social) tenha tido as consequênc­ias factuais que deveriam residir na prática jurídica, isto é, a aplicação de uma verdadeira pena de demissão da presidênci­a de uma associação civil. Na Alemanha nazi foi publicado um livro com depoimento­s de cientistas designado “Cem Autores Contra Einstein”. A reação de Einstein foi: “Porquê cem? Se eu estivesse errado bastaria somente um”. A Verdade não é nem democrátic­a nem quantitati­va.

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