Verdades que se confundem
E ste defeso futebolístico tem sido marcado pelo caso de Luís Filipe Vieira. O processo em si, que desconheço – como a quase totalidade dos portugueses – não me merecerá qualquer comentário. Como jurista que sou, sei que não deverei nunca comentar um processo judicial (seja em investigação, seja em fase de julgamento ) sem o conhecer. Fazer isso seria prestar um péssimo serviço à correta aplicação da Justiça. Mas o processo tem contornos socio-comportamentais que, por serem cada vez mais predominantes na sociedade contemporânea, me preocupam verdadeiramente. Antes de mais, devo dizer que não tenho por Vieira qualquer simpatia pessoal. Aliás, tenho dentro de mim uma verdadeira cláusula antirrivais que não me permite sentir simpatia pelo sr. Vieira, pelo sr. Pinto da Costa ou pelo sr. Varandas, ou por quem venha a ocupar os respetivos lugares. Mas, o certo é que a Vieira foi já aplicada uma verdadeira pena sem que tenha sido julgado ou sequer acusado. Vieira deixou de ser presidente do Benfica, forçado a uma demissão, não por qualquer decisão judicial ou pena sancionatória que lhe tenha sido aplicada, mas porque os jornais, as televisões e os comentadores contaram a narrativa que lhes melhor serviu. E tudo sem conhecerem, sequer, o processo. E sem contraditório. Vi também Rui Costa assumir-se como presidente dos benfiquistas, falando no relvado do estádio, como se duma verdadeira “tomada de posse” se tratasse, sem nunca ter sido sequer eleito. Vivemos tempos assim, em que os vários níveis de verdade se confundem. Os gregos clássicos conheciam bem a diferença entre “doxa” e “sophia”: a primeira era a opinião, a afirmação sem fundamento, baseada no senso comum e na subjetividade; a segunda, a sabedoria, era a possibilidade de Verdade, baseada na prova empírica e na lógica matemática. Os pensadores da modernidade mostraram que entre as duas existem vários graus ou modelações, aquilo a que Karl Popper chamou “verdades operacionais”. A verdade jurídica, a da lei e dos tribunais, não sendo a verdade com V maiúsculo, é, ainda assim, uma verdade que exige método, prova, formalismos, lógica dedutiva e racionalidade. Por isso, a sociedade lhe atribui efeitos comunitários reais: as penas de prisão, efeitos sobre a propriedade, sobre o rendimento, sobre a liberdade de associação, sobre o nosso trabalho, etc. Bem diferente é a verdade jornalística, mais perto da “doxa” grega e bem longe da “sophia”, pois, para além da coerência interna do texto, não lhe é exigida qualquer
Vi Rui Costa assumir-se como presidente dos benfiquistas sem nunca ter sido sequer eleito
racionalidade probatória (bem refugiada, aliás, por detrás da confidencialidade das fontes). O que se torna muito anómalo, neste caso de Vieira, é que a “verdade jornalística” (multiplicada e amplificada pelo éter da comunicação social) tenha tido as consequências factuais que deveriam residir na prática jurídica, isto é, a aplicação de uma verdadeira pena de demissão da presidência de uma associação civil. Na Alemanha nazi foi publicado um livro com depoimentos de cientistas designado “Cem Autores Contra Einstein”. A reação de Einstein foi: “Porquê cem? Se eu estivesse errado bastaria somente um”. A Verdade não é nem democrática nem quantitativa.