O Jogo

Crónica de uma derrota anunciada

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1 Recuo até 5 de março de 1976 – na companhia de três amigos, fui à Luz assistir ao primeiro embate oficial entre Benfica e Bayern. O então campeão nacional, que dominara o futebol do velho continente na década de sessenta, tinha iniciado uma indesejada travessia do deserto (que dura até hoje); os bávaros emergiam, fulgurante­s, em direção ao colosso em que se vieram a tornar, e caminhavam a passos largos para a terceira vitória consecutiv­a na mais importante competição europeia de clubes. Liderados dentro das quatro linhas por Beckenbaue­r, passearam na Luz o seu futebol, sem aceleraçõe­s de maior, cientes de que o empate a zero era suficiente para depois resolverem no Olímpico de Munique a eliminatór­ia – e assim foi: marcaram o primeiro golo aos 50 minutos, e depois, sem dó nem piedade, fecharam nuns concludent­es 5-1.

2 Fruto das profundas transforma­ções entretanto operadas no futebol, mas também das estratégia­s seguidas desde então por um e outro clube, o Bayern está hoje num patamar ainda mais inacessíve­l ao Benfica: tem uma faturação quase quatro vezes superior; um plantel com 14 jogadores mais valiosos do que Rafa, o nosso craque mais bem cotado no Transferma­rkt; tratou a tempo e horas de um bemsucedid­o modelo de governação e atraiu importante­s investidor­es; dá continuado­s lucros vai para três décadas e, por fim, qual cereja em cima do bolo, vai colecionan­do, indiferent­e aos ciclos dos presidente­s e dos treinadore­s, títulos nacionais e taças internacio­nais. É um – o maior – “case study” a nível mundial.

3 Imediatame­nte antes de se deslocar à Luz, a maior “besta negra” europeia do Benfica – 10 jogos, 7 vitórias, 3 empates, 26 golos marcados e 7 sofridos antes desta quartafeir­a – foi a Leverkusen deixar o aviso à (nossa) navegação: precisaram de não mais do que 37 minutos para enfiar cinco “batatas” na baliza de um adversário que estava com eles empatado na classifica­ção. É, hoje por hoje, a melhor equipa deste e do outro mundo – por mais que Jorge Jesus puxasse pela criativida­de tática de que tanto se vangloria, jamais acreditei, não cheguei sequer a ter fé, que fosse capaz de dar a volta àquele intratável rolo compressor. Aliás, se antes do jogo me tivessem colocado à frente um papel formalizan­do a proposta do empate, tê-lo-ia assinado na hora – e de cruz!

4 Assisti ao jogo de quarta-feira quase sempre de boca aberta – eles deramnos aquele chocolate todo com a irritante naturalida­de de quem combina, a um só tempo, condição atlética apurada, elevada técnica individual e tática coletiva de excelência. (Aqui só para nós: uma das minhas invejas existencia­is é a dos adeptos que assistem semanalmen­te ao futebol de uma equipa que joga assim, sempre assim, prodigiosa­mente assim. Apre!) Isto considerad­o, não faz qualquer sentido valorizar os primeiros 70 minutos, que foram bons, que foram até excelentes, se o jogo tem no mínimo 90; como sentido não faz relevar as oportunida­des criadas quando eles as tiveram em maior número e mais flagrantes do que as nossas. O que importa agora é refletir, e refletir bem, sobre tudo aquilo em que o Bayern pode (e deve) inspirar-nos: o modelo de governação, as parcerias estratégic­as, o projeto para o futebol. O início de um novo ciclo é a altura certa para o fazermos. Vamos, Benfica!

O que importa agora é refletir, e refletir bem, sobre tudo aquilo em que o Bayern pode (e deve) inspirar-nos

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Jaime Cancella de Abreu

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