Não está num trinco
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A felicidade no futebol não está escondida num trinco. Quanto muito, estarão, ao longo da vida dum jogo, momentos táticos felizes (ou que evitam sofrimentos maiores). A maior proximidade com esse estado de felicidade (com paixão) está quando se trata bem a “mulher bonita” (a bola, claro) e esse amor futebolístico é correspondido. Aqui, admito, a narrativa fica romanticamente pragmática. É preciso que isso traga resultados práticos que nos encham (e não que partam) o coração de amantes que mandam flores à bola e ao futebol esteticamente bonito. Concretizemos esta visão do amor em tempo de sistemas táticos. Com respeito para todos os gostos, sinto-o entre ter na vida (da equipa em campo) um nº 6 de início de construção de jogo como Rúben Neves (não lhe chamam trinco, chamam-lhe pivô) em vez dum n.º 6 pilar de equilíbrio físico defensivo (não lhe chamam pivô, chamam-lhe trinco). Basta ver como Danilo joga hoje (e bem) a defesa-central para perceber o que traduz no conceito de jogo optar por um ou por outro no início de saída de bola a meio-campo na posição que abre a porta para a forma como a equipa quer jogar. Fazer o mesmo recuo posicional com Neves seria, naturalmente, impossível.
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O tenebroso mundo tático dos “dois trincos” (que assombrou a simplicidade de análise no Euro’2020) parece, assim, aniquilado. Neste ponto, sem me contradizer, tenho de defender outras formas de felicidade. Porque entra aqui um terceiro elemento. A poligamia é taticamente bem aceite (e até recomendável) numa equipa de futebol. Penso em William Carvalho. Ele pode (e acho que deve) entrar nos dois conceitos de felicidade tático-estética. Jogando como 8 (a forma como Fernando Santos o vê, tirando-lhe a face posicional primitiva do trinco) ele vive de outra forma no jogo.
Entre os espaços que, contra a Suíça, teve para “queimar linhas” com a bola, e os que não teve, contra a República Checa, que subiu a agressividade de marcações a meio-campo, notouse o problema que sempre turvou o futebol de William e levou-o a ser rotulado de lento: dificuldade em sair da pressão (problema com que se debate mais um 6 e o levava, nessa prisão/pressão, a lateralizar excessivamente o jogo).
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A 8 esse problema pode surgir mais à frente, dependendo do local onde o adversário espera para começar a pressionar. Nessa altura, porém, o problema ressurge de forma diferente porque então já tem por perto outro tipo de apoios/ ajudas e porque está numa zona adiantada de menor risco de perda. Foi, nesse momento de jogo que, contra os checos, se viu surgir Bernardo Silva, a jogar como um “8+10” e, num ápice, esses problemas (os de William, da equipa e último passe) ficavam resolvidos. Saímos então do iminente sofrimento para a felicidade. A bola voltava a sentirse bem na nossa companhia.
A visão do “amor em tempo de sistemas táticos”