O Jogo

Finalmente, a bola rolou a sério

- Carlos Tê O autor optou por escrever na ortografia antiga

Começaram finalmente os jogos a doer. O ciclismo costumava preencher o vazio sazonal do defeso, mas isso faz parte dum passado com quatro estações bem medidas, quando as alterações climáticas eram fantasmas para amedrontar crianças que não comiam a sopa toda. Fustigado pelos casos de doping, o ciclismo ficou para trás no retrovisor. Agora, o futebol produz o copioso noticiário da sua ausência e faz do defeso um período cada vez mais monotemáti­co. A logística da época em preparação ocupa a agenda desportiva com movimentos do mercado, rumores, impermanên­cias, falsas saídas, como a de Ronaldo, ou saídas verdadeira­s, como a de Francisco Conceição.

No caso de Francisco, o dilema dum filho a jogar na equipa treinada pelo pai teve bom desfecho, embora mal recebido pelos adeptos – se bem que ambos devam ter sentido o alívio da solução encontrada. Francisco saiu, maior e vacinado, dono do seu destino profission­al, para um clube prestigian­te, mas o pai foi criticado por não o ter coagido a renovar contrato, como se o filho não tivesse voto na matéria. A ser verdade que Francisco ganhava dois mil euros por mês, não espantou a inamovível cláusula baixa, fica até a sensação de ter sido negligenci­ado por ser filho do treinador.

Pior é a situação de Ronaldo em Manchester, uma novela com guião baço e perfume de prima-dona. O craque quer sair para, diz-se, jogar a Champions e lutar por mais uma Bola de Ouro, apesar de indesejado nas poucas grandes equipas que o podem acolher. Que pretende Ronaldo aos trinta e sete anos? Aplicar um último e grandioso drible à biologia? No cinema, há papéis ajustados ao envelhecim­ento – Marlon Brando pode ser um Padrinho da Máfia, Anthony Hopkins pode ser o Rei Lear de Shakespear­e – mas a essência do futebol é cruel e não concede ajustament­os, apenas funções como treinador ou dirigente, maneiras de ficar por perto e contornar a despedida definitiva.

Depois duma reunião em Manchester, Ronaldo postou uma foto em cuecas na sauna com uma citação atribuída a Martin Luther King: “a genética carrega o revólver, o estilo de vida puxa o gatilho”. Qual o significad­o disto? O elixir da eterna juventude? Um jornal espanhol especulou que teria recorrido à toxina botulínica para ganhar volume nas partes íntimas. Gerir o fim é uma arte delicada, mas a pose narcisista é um erro crasso. As redes sociais não poupam no enxovalho. O futebol herdou a impiedade romana do pão e do circo: odeia e ama intensamen­te por igual. Piqué, quando tocou na bola num recente Barcelona-Real Madrid, em Las Vegas, ouviu gritar por Shakira no estádio.

Com Ronaldo contrariad­o em Manchester, o espectácul­o do seu ego inflamado – colocando o utente acima do clube que o catapultou – introduz um tom penoso no capítulo final duma trajectóri­a magnífica. Alguém devia dar-lhe umas dicas sobre a nobreza que pode haver na finitude. Com o Mundial à porta, Fernando Santos dispensava ter o seu emblemátic­o capitão enredado em polémicas na comunicaçã­o social, que vai aguçando os dentes.

Que pretende Ronaldo aos 37 anos? Aplicar um último e grandioso drible à biologia? Gerir o fim é uma arte delicada, mas a pose narcisista é um erro crasso

Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadam­ente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães

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Ronaldo e Bruno Fernandes, goleados em Brentford, são a imagem da desolação
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Folha Seca

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