Finalmente, a bola rolou a sério
Começaram finalmente os jogos a doer. O ciclismo costumava preencher o vazio sazonal do defeso, mas isso faz parte dum passado com quatro estações bem medidas, quando as alterações climáticas eram fantasmas para amedrontar crianças que não comiam a sopa toda. Fustigado pelos casos de doping, o ciclismo ficou para trás no retrovisor. Agora, o futebol produz o copioso noticiário da sua ausência e faz do defeso um período cada vez mais monotemático. A logística da época em preparação ocupa a agenda desportiva com movimentos do mercado, rumores, impermanências, falsas saídas, como a de Ronaldo, ou saídas verdadeiras, como a de Francisco Conceição.
No caso de Francisco, o dilema dum filho a jogar na equipa treinada pelo pai teve bom desfecho, embora mal recebido pelos adeptos – se bem que ambos devam ter sentido o alívio da solução encontrada. Francisco saiu, maior e vacinado, dono do seu destino profissional, para um clube prestigiante, mas o pai foi criticado por não o ter coagido a renovar contrato, como se o filho não tivesse voto na matéria. A ser verdade que Francisco ganhava dois mil euros por mês, não espantou a inamovível cláusula baixa, fica até a sensação de ter sido negligenciado por ser filho do treinador.
Pior é a situação de Ronaldo em Manchester, uma novela com guião baço e perfume de prima-dona. O craque quer sair para, diz-se, jogar a Champions e lutar por mais uma Bola de Ouro, apesar de indesejado nas poucas grandes equipas que o podem acolher. Que pretende Ronaldo aos trinta e sete anos? Aplicar um último e grandioso drible à biologia? No cinema, há papéis ajustados ao envelhecimento – Marlon Brando pode ser um Padrinho da Máfia, Anthony Hopkins pode ser o Rei Lear de Shakespeare – mas a essência do futebol é cruel e não concede ajustamentos, apenas funções como treinador ou dirigente, maneiras de ficar por perto e contornar a despedida definitiva.
Depois duma reunião em Manchester, Ronaldo postou uma foto em cuecas na sauna com uma citação atribuída a Martin Luther King: “a genética carrega o revólver, o estilo de vida puxa o gatilho”. Qual o significado disto? O elixir da eterna juventude? Um jornal espanhol especulou que teria recorrido à toxina botulínica para ganhar volume nas partes íntimas. Gerir o fim é uma arte delicada, mas a pose narcisista é um erro crasso. As redes sociais não poupam no enxovalho. O futebol herdou a impiedade romana do pão e do circo: odeia e ama intensamente por igual. Piqué, quando tocou na bola num recente Barcelona-Real Madrid, em Las Vegas, ouviu gritar por Shakira no estádio.
Com Ronaldo contrariado em Manchester, o espectáculo do seu ego inflamado – colocando o utente acima do clube que o catapultou – introduz um tom penoso no capítulo final duma trajectória magnífica. Alguém devia dar-lhe umas dicas sobre a nobreza que pode haver na finitude. Com o Mundial à porta, Fernando Santos dispensava ter o seu emblemático capitão enredado em polémicas na comunicação social, que vai aguçando os dentes.
Que pretende Ronaldo aos 37 anos? Aplicar um último e grandioso drible à biologia? Gerir o fim é uma arte delicada, mas a pose narcisista é um erro crasso
Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadamente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães