O Jogo

O futebol é uma outra vida

- Álvaro Magalhães O autor optou por escrever na ortografia antiga

APremier League é tão perfeita que não lhe faltam imperfeiçõ­es e, de vez em quando, é o avesso daquilo que passa por ser, ou seja, um mau exemplo. Foi o caso do engalfinha­mento de Antonio Conte e Thomas Tuchel, durante o recente Chelsea-Totenham. Pareciam cães selvagens, prestes a devorarem-se mutuamente, não fosse uma multidão separá-los. Como a Premier League é a melhor de todas as ligas, as suas cenas de arruaça e violência também são as melhores. As nossas, como as que protagoniz­a Sérgio Conceição, por exemplo, comparadas com aquilo, são brincadeir­as de meninos. E, no entanto, Conceição é conhecido, e até perseguido, por ser um bárbaro intratável. Chegam a dizer que «não devia estar no futebol», quando ele faz aquilo justamente por estar no futebol, sob o efeito do seu vapor narcótico. Como aconteceu a Conte e Tuchel. O futebol faz isso às pessoas, até às que estão na liga da elevação e do «fair-play».

No entanto, poucos minutos depois da luta feroz no relvado, Tuchel, na sala de imprensa, já era um outro. Disse ele: “O que aconteceu faz parte do jogo. Ainda não falei com o Antonio, mas não temos problemas pessoais». Por sua vez, Conte também já era um outro, muito diferente. Disse ele: “Tudo ficou no campo, como deve ser”.

Foi como se nos estivessem a dizer: “Nós somos pessoas civilizada­s, aquilo foi com os outros que também somos, durante a outra vida que o futebol nos propicia”. Sim, é verdade, ele concede-nos a alegria, e a tristeza, de uma outra vida, a tal em que nós perdemos a cabeça, de vez em quando, por excesso de sentir. Aliás, basta olhar em volta para colhermos, em todo o lado, mais provas dessa outra vida, irracional, e tão profundame­nte sentimenta­l que pode ser avassalado­ra. Uma criança de colo, nos braços do pai, chorava copiosamen­te depois da sua equipa, o Corinthian­s, ter sofrido um golo. Um adepto do Palmeiras, homem feito, chorava como uma criança, mas de alegria, no final do jogo dramático em que a sua equipa eliminou o Atlético Mineiro, na Taça dos Libertador­es. Um adepto do Manchester United, no campo do Brentford, agonizava, amparado por stewards, como se tivesse acabado de ser ferido de morte - e tinha (a sua equipa perdia por 4-0).

A FIFA está a estudar um conjunto de mudanças das regras que, dizem eles, visa tornar o futebol mais atraente, mas o que o torna essencial e vital não é o facto de ser mais ou menos atraente, é a sua capacidade de nos fazer sentir, e tão excessivam­ente. Porém, a esse sentir correspond­e uma perda acentuada de consciênci­a, o que nos empurra perigosame­nte para comportame­ntos instintivo­s, mesmo alucinados, que nunca teríamos na nossa vida ordinária. E esses comportame­ntos fazem parte do jogo, como disse Tuchel; e no jogo ficam, como disse Conte.

Há meio século, Gilles Deleuze dizia-nos que devíamos saber tripar com um copo de água pura. Ora, o futebol, que alguns equiparam a uma droga dura, dizendo que é o ópio que nos afasta da realidade e da construção edificante (um tópico mais do que discutível), é esse copo de água pura que nos faz tripar.

O que torna o futebol essencial e vital não é o facto de ser mais ou menos atraente, é a sua capacidade de nos fazer sentir e tão excessivam­ente

Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadam­ente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães

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Tuchel e Conte pegaram-se, mas no final ficou tudo bem
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Visto do Sofá

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