O Jogo

Muito buzz para nada

- Álvaro Magalhães O autor optou por escrever na ortografia antiga

Otempo útil de jogo é a inútil discussão do momento, e não é por Sérgio Conceição a ter usado como desculpa para a derrota em Vila do Conde, onde até se jogou mais do que é normal (59 minutos). Acontece que o não-jogo foi identifica­do como o principal inimigo do jogo - e do negócio que lhe está associado, ou não viria daí mal ao mundo. A FIFA está a testar uma nova regra. Por cá, a Liga de Clubes, a FPF e o Conselho de Arbitragem chamaram dirigentes, árbitros, treinadore­s, e tentaram sensibiliz­á-los para a nova causa, como se isso se resolvesse com umas palavrinha­s. A Liga também criou um prémio para a equipa que menos tempo «queimar» (uma espécie de campeão dos totós), como se alguém quisesse ganhar esse prémio. O objectivo de todas essas acções, explicou Pedro Proença, em linguagem modernaça, a armar ao pingarelho, «é criar um buzz», isto é, fazer um estardalha­ço à volta do assunto. Como se isso lá fosse com barulheira.

Somos um dos países que mais jogo mata (os penúltimos da Europa), com uma média de 52 minutos de jogo jogado. A manha e a ratice, os grandes accionista­s do nãojogo, sempre foram culturalme­nte aceites por aqui. Podiam não ser virtudes, mas não chegavam a ser pecados. E uma tradição não se desfaz de um dia para o outro.

Depois, há o vício de protestar, a negação sistemátic­a das decisões desfavoráv­eis, até das evidências mais ululantes. Se é contra nós, está mal. E uma falta é sempre contra alguém. Por fim, há as reposições da bola, a marcação de cantos, livres, faltas, pontapés de baliza, as substituiç­ões, e tudo são modos de inutilizar o tempo, sendo preciso. Segundo um

estudo recente, o tempo que a bola passa fora do campo correspond­e a um quinto do tempo total de jogo.

Todos de acordo, portanto: o não-jogo é o inimigo a abater. O problema é que isto não vai lá com reuniões, prémios e «buzzes». Como disse Sérgio Conceição, de um lado, o dos promotores, há romantismo, do outro, o dos protagonis­tas, há hipocrisia. A única solução é parar o relógio sempre que não há jogo efectivo, somando 60 minutos de jogo jogado. E sabe-se que a FIFA está morta por aplicar essa nova regra, que é praticamen­te inevitável.

Mas, atenção: ela é uma arma de dois gumes e também pode ferir quem a usa. Como os tempos mortos são tempo de descanso para os jogadores, que assim se protegem do desgaste, a nova regra pode levar a outras mudanças, como a do número de substituiç­ões e a

do número de jogadores no banco; o que, por sua vez, obrigará a revisões dos plantéis e do próprio conceito de grupo e de equipa; o que, por fim, exigirá ajustament­os ao nível do treino e do enquadrame­nto estratégic­o do jogo. E isso já são mudanças a mais. Tanta emenda pode danificar a perfeição estrutural do soneto ou enviar a poética do jogo para longe. E a FIFA, além desta regra, tem mais cinco em fase de testes, e algumas são tão absurdas como a do lançamento lateral com o pé. Que alguém os segure, por favor, e lhes diga isto, ao ouvido: não se pode tocar no futebol, nem com uma flor, quanto mais com um ramalhete de novas regras.

A manha e a ratice, os grandes accionista­s do não-jogo, sempre foram culturalme­nte aceites por aqui. Podiam não ser virtudes, mas não chegavam a ser pecados

Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadam­ente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães

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Em Vila do Conde, Sérgio Conceição queixou-se do anti-jogo
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Visto do Sofá

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