Muito buzz para nada
Otempo útil de jogo é a inútil discussão do momento, e não é por Sérgio Conceição a ter usado como desculpa para a derrota em Vila do Conde, onde até se jogou mais do que é normal (59 minutos). Acontece que o não-jogo foi identificado como o principal inimigo do jogo - e do negócio que lhe está associado, ou não viria daí mal ao mundo. A FIFA está a testar uma nova regra. Por cá, a Liga de Clubes, a FPF e o Conselho de Arbitragem chamaram dirigentes, árbitros, treinadores, e tentaram sensibilizá-los para a nova causa, como se isso se resolvesse com umas palavrinhas. A Liga também criou um prémio para a equipa que menos tempo «queimar» (uma espécie de campeão dos totós), como se alguém quisesse ganhar esse prémio. O objectivo de todas essas acções, explicou Pedro Proença, em linguagem modernaça, a armar ao pingarelho, «é criar um buzz», isto é, fazer um estardalhaço à volta do assunto. Como se isso lá fosse com barulheira.
Somos um dos países que mais jogo mata (os penúltimos da Europa), com uma média de 52 minutos de jogo jogado. A manha e a ratice, os grandes accionistas do nãojogo, sempre foram culturalmente aceites por aqui. Podiam não ser virtudes, mas não chegavam a ser pecados. E uma tradição não se desfaz de um dia para o outro.
Depois, há o vício de protestar, a negação sistemática das decisões desfavoráveis, até das evidências mais ululantes. Se é contra nós, está mal. E uma falta é sempre contra alguém. Por fim, há as reposições da bola, a marcação de cantos, livres, faltas, pontapés de baliza, as substituições, e tudo são modos de inutilizar o tempo, sendo preciso. Segundo um
estudo recente, o tempo que a bola passa fora do campo corresponde a um quinto do tempo total de jogo.
Todos de acordo, portanto: o não-jogo é o inimigo a abater. O problema é que isto não vai lá com reuniões, prémios e «buzzes». Como disse Sérgio Conceição, de um lado, o dos promotores, há romantismo, do outro, o dos protagonistas, há hipocrisia. A única solução é parar o relógio sempre que não há jogo efectivo, somando 60 minutos de jogo jogado. E sabe-se que a FIFA está morta por aplicar essa nova regra, que é praticamente inevitável.
Mas, atenção: ela é uma arma de dois gumes e também pode ferir quem a usa. Como os tempos mortos são tempo de descanso para os jogadores, que assim se protegem do desgaste, a nova regra pode levar a outras mudanças, como a do número de substituições e a
do número de jogadores no banco; o que, por sua vez, obrigará a revisões dos plantéis e do próprio conceito de grupo e de equipa; o que, por fim, exigirá ajustamentos ao nível do treino e do enquadramento estratégico do jogo. E isso já são mudanças a mais. Tanta emenda pode danificar a perfeição estrutural do soneto ou enviar a poética do jogo para longe. E a FIFA, além desta regra, tem mais cinco em fase de testes, e algumas são tão absurdas como a do lançamento lateral com o pé. Que alguém os segure, por favor, e lhes diga isto, ao ouvido: não se pode tocar no futebol, nem com uma flor, quanto mais com um ramalhete de novas regras.
A manha e a ratice, os grandes accionistas do não-jogo, sempre foram culturalmente aceites por aqui. Podiam não ser virtudes, mas não chegavam a ser pecados
Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadamente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães