Luís Freitas Lobo A alma do novo “barrilete cósmico”
Liechtenstein e Luxemburgo são os próximos adversários de Portugal. O 196.º e o 92.º classificados do ranking da FIFA são os primeiros dois obstáculos a ultrapassar no apuramento para o Europeu de 2024 que arranca em março. É relevante sabê-lo, desde logo considerando a possibilidade de uma iminente mudança no comando técnico da Seleção Nacional. A acontecer, o eventual sucessor de Fernando Santos vai precisar de tempo para implementar as respetivas ideias. Ora, como todos sabemos, de acordo com a teoria da relatividade especial do futebol, o tempo é relativo aos resultados: encurta drasticamente com as derrotas na mesma razão em que aumenta exponencialmente com as vitórias. Liechtenstein e Luxemburgo são pouco menos do que os adversários ideais para uma entrada relativamente tranquila na atmosfera da Seleção por parte de um novo treinador, oferecendo o contexto ideal para o início de um novo ciclo e adiando a inevitável comparação com o legado que o engenheiro deixa na equipa das Quinas. E é um legado considerável. Aliás, de certa forma, Fernando Santos acaba por ser vítima do seu próprio sucesso. Foi ele que elevou a fasquia das expectativas com a conquista do Europeu em 2016 e da Liga das Nações de 2019 até tornar impossível corresponder-lhes com a regularidade que a crítica exige. A questão é que essa fasquia não vai baixar quando o Engenheiro sair. Mais cedo ou mais tarde, será em relação a ela que o trabalho de qualquer sucessor será medido e, se formos honestos e sensatos, o melhor que podemos esperar é que os próximos oito anos da Seleção sejam tão bons como os últimos. *
Jogar contra a esta Croácia, catedrática-balzaquiana a nível do seu meio-campo conhecedor de todos os ritmos, é como jogar contra um programa informático futebolístico preciso e de sabedoria acumulada. É o “hardware tático” Brozovic-Kovacic-Modric. Podia ganhar esta Argentina, reconvertida num 4x4x2 com duplo-pivô Paredes-Enzo para cobrir espaços atrás mais centrais pressionando alto ao mesmo tempo? Não era fácil. E é difícil ter essa iniciativa/ ousadia. Porque quando se mete atrás, esta Croácia sábia, tecnicista e de gestão (tática e esforço) mete-se mesmo atrás. A chave? Enzo Fernández, um jogador para saltar desse espaço estratégico recuado e chegar à frente, rompendo e passando. Assim chegou aquela bola a Julian Alvarez, um avançado total, n.º 9 puro (está na camisola), solto ou vindo da faixa, jogando com orgulho de bairro no estádio cheio de um Mundial, borbulhas de “pibe”, garra genética, sem medo de nada.
Ganha um penálti (Messi marca) e faz um golo arrancando por entre as entranhas da área croata. A “Scaloneta”, o sistema-Scaloni dos três centrais contra a Holanda ao regresso às bases 4x4x2 contra a Croácia, tinha pensado em tudo. Como fechar-se, pressionar e sair. Até marcar.
Poderia esta Croácia, porém, ter uma existência diferente? Tentou-o ao meter um segundo n.º 9 de força, Petkovic, tirando uma peça da sala de máquinas (a bússola Brozovic). A reação do “processo-scaloneta” ao meter um terceiro central (Lisandro Martínez e passar para três centrais, 5x3x2) podia mostrar tanta astúcia defensiva como medo que fizesse a equipa recuar.
Podia ser isso num mundo humano-futebolisticamente normal, mas quando Messi (que acabara a primeira parte a queixar-se de uma dor, no joelho, coxa, tornozelo, que importa?) pegou na “pelota” bem longe da chamada zona de perigo, desde a faixa direita, e a partir daí inventou uma jogada “maradonianamente abençoada” dando outra bola de golo feito ao “pibe” Alvarez, borbulhas de goleador, tudo aquilo já não era futebol. Era um jogador de futebol a pisar a lua e a dar a terra relvada aos outros. Messi tem alma de “barrilete cósmico”.
Era o 3-0 e já podíamos olhar também para outras “chaves das pampas”. Como Mac Allister, esse médio que mete tudo naquele meio-campo, e um lateral-esquerdo renascido, Tagliafico, que fechou e subiu quando devia. Um onze argentino que saiu do “inferno das arábias” do primeiro jogo até à final sonhada.
Vénia para um poeta que também estará no último Mundial. Modric. Viu a casa onde nasceu destruída pelas bombas duma guerra fratricida e, com olhar de ternura pela bola, levou pelo mundo o que era poesia e nobreza através de como jogar futebol. Jogou, aos 37 anos, como sabe, ensina e os limites físicos lhe permitiam. Uma lição de como estar em campo e ver o jogo. Génio!