O papel manuscrito, nos sessenta anos de Mourinho
Uma das inovações introduzidas pelos portugueses no futebol foi a comunicação entre treinador e equipa por papelinho escrito. Julgo ter sido Mourinho o autor do método, aquando do grande salto para a ribalta britânica. Outros contributos não devem ser considerados inovações mas melhoramentos, pois já existiam em variantes locais, como os mind-games, resposta do mesmo Mourinho à pressão carrancuda e intimidatória que Alex Ferguson exercia no Manchester – e eficaz, segundo diz o ex-árbitro Mark Clattenburg na sua autobiografia, ao ponto de até os polícias de serviço aos estádios temerem os seus rompantes de ira. Ao carisma autoritário do escocês contrapôs Mourinho o pacote da manha lusitana – reclamação contínua, choradinho, suspeita – para romper o status-quo e revertê-lo a seu favor.
Quando o papel entrou em cena, a comunidade do futebol rendeu-se, incrédula e divertida, à originalidade do mensageiro – um tweet analógico enviado à equipa no momento em que o jogo se parte, qual porcelana, instalando o caos, esfrangalhando marcações, com o treinador em dificuldade para se fazer ouvir. A instrução táctica é rabiscada e entregue na linha lateral para circular sectorialmente de mão em
mão até ser arquivada nos calções do último leitor. Além de reagrupar a hoste, o papel contém um elemento secreto, quase conspirativo, capaz de semear a dúvida no adversário. Tanto pode ser visto num Vizela-Porto, num Cádiz-Almería, como num Passarinhos da Ribeira-Águias de São Cosme, e, grosso modo, equivale ao uso do pombocorreio na idade do 5G. Na sua génese, podem estar os
sinais codificados que os jogadores de sueca trocam entre si nos tascos do norte sugerindo a posse de trunfos falsos ou reais.
Para uns, pelo seu aparato anacrónico, o papel é o esplendor do bluff. Para outros, confirma a vitalidade arcaica do futebol num tempo de apps de monitorização de tudo e mais alguma coisa, GPS, gráficos de resiliência física e mental. No Palmeiras-Góias do último Brasileirão, o papel fez furor na Imprensa brasileira, que se deleitou a tentar adivinhar-lhe o conteúdo. No fim do jogo, o Palmeiras divulgou um vídeo com Abel Ferreira no seu gabinete reencenando a escrita. Que dizia ele? “Força, continuem a lutar, Avanti Palestra!” Tratou-se dum golpe de marketing comunicacional, uma manobra psicológica de motivação num país rendido ao futebol-arte mas propenso ao deslum
bramento e ao relaxe, por isso já vai em sete, este ano, o contingente dos nossos treinadores, apreciados pela astúcia e pela disciplina. O resto do pacote – suspeita, lamúria, protesto enérgico e reiterado – veio incluído no bornal e levou à acusação de abusarem dum provérbio popular no Brasil que traduz camadas da alma lusitana: “quem não chora não mama”. Certo é que Abel foi campeão, para mal dos cotovelos dos treinadores locais, que não param de doer.
Na semana em que Mourinho fez sessenta anos, celebre-se a sua longevidade e também a sua veia performativa. O papel garatujado continua a ser um achado magnífico.
Quando o papel entrou em cena, a comunidade do futebol rendeu-se, incrédula e divertida, à originalidade do mensageiro - um tweet analógico enviado à equipa
Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadamente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães