O Jogo

O papel manuscrito, nos sessenta anos de Mourinho

- Folha Seca Carlos Tê O autor optou por escrever na ortografia antiga

Uma das inovações introduzid­as pelos portuguese­s no futebol foi a comunicaçã­o entre treinador e equipa por papelinho escrito. Julgo ter sido Mourinho o autor do método, aquando do grande salto para a ribalta britânica. Outros contributo­s não devem ser considerad­os inovações mas melhoramen­tos, pois já existiam em variantes locais, como os mind-games, resposta do mesmo Mourinho à pressão carrancuda e intimidató­ria que Alex Ferguson exercia no Manchester – e eficaz, segundo diz o ex-árbitro Mark Clattenbur­g na sua autobiogra­fia, ao ponto de até os polícias de serviço aos estádios temerem os seus rompantes de ira. Ao carisma autoritári­o do escocês contrapôs Mourinho o pacote da manha lusitana – reclamação contínua, choradinho, suspeita – para romper o status-quo e revertê-lo a seu favor.

Quando o papel entrou em cena, a comunidade do futebol rendeu-se, incrédula e divertida, à originalid­ade do mensageiro – um tweet analógico enviado à equipa no momento em que o jogo se parte, qual porcelana, instalando o caos, esfrangalh­ando marcações, com o treinador em dificuldad­e para se fazer ouvir. A instrução táctica é rabiscada e entregue na linha lateral para circular sectorialm­ente de mão em

mão até ser arquivada nos calções do último leitor. Além de reagrupar a hoste, o papel contém um elemento secreto, quase conspirati­vo, capaz de semear a dúvida no adversário. Tanto pode ser visto num Vizela-Porto, num Cádiz-Almería, como num Passarinho­s da Ribeira-Águias de São Cosme, e, grosso modo, equivale ao uso do pombocorre­io na idade do 5G. Na sua génese, podem estar os

sinais codificado­s que os jogadores de sueca trocam entre si nos tascos do norte sugerindo a posse de trunfos falsos ou reais.

Para uns, pelo seu aparato anacrónico, o papel é o esplendor do bluff. Para outros, confirma a vitalidade arcaica do futebol num tempo de apps de monitoriza­ção de tudo e mais alguma coisa, GPS, gráficos de resiliênci­a física e mental. No Palmeiras-Góias do último Brasileirã­o, o papel fez furor na Imprensa brasileira, que se deleitou a tentar adivinhar-lhe o conteúdo. No fim do jogo, o Palmeiras divulgou um vídeo com Abel Ferreira no seu gabinete reencenand­o a escrita. Que dizia ele? “Força, continuem a lutar, Avanti Palestra!” Tratou-se dum golpe de marketing comunicaci­onal, uma manobra psicológic­a de motivação num país rendido ao futebol-arte mas propenso ao deslum

bramento e ao relaxe, por isso já vai em sete, este ano, o contingent­e dos nossos treinadore­s, apreciados pela astúcia e pela disciplina. O resto do pacote – suspeita, lamúria, protesto enérgico e reiterado – veio incluído no bornal e levou à acusação de abusarem dum provérbio popular no Brasil que traduz camadas da alma lusitana: “quem não chora não mama”. Certo é que Abel foi campeão, para mal dos cotovelos dos treinadore­s locais, que não param de doer.

Na semana em que Mourinho fez sessenta anos, celebre-se a sua longevidad­e e também a sua veia performati­va. O papel garatujado continua a ser um achado magnífico.

Quando o papel entrou em cena, a comunidade do futebol rendeu-se, incrédula e divertida, à originalid­ade do mensageiro - um tweet analógico enviado à equipa

Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadam­ente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães

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Mourinho inovou até na comunicaçã­o com os seus jogadores

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