Ponham rodas nas balizas
Oespírito desmanchaprazeres do futebol voltou a fazer das suas, desta vez em Leiria, quando o país e os publicitários afiavam o dente para uma final entre Sporting e Benfica – apimentada pela peixeirada de acusações sobre cambalachos impensáveis em gente tão virtuosa como a da segunda circular. Consta que a Liga pretendia embrulhar a final desejada em papel de luxo e enviá-la a Meca com lacinho, esperando que o califado da bola adjudicasse a próxima edição, já que peregrinar àquelas paragens é tendência actual da indústria espanhola e italiana, como se viu pelas super taças lá disputadas este mês. Mas se já é difícil vender um Braga-Estoril a portugueses, imagine-se a sauditas. Culpas? Só dos desígnios do futebol, que permanecem insondáveis – por muito que os executivos tentem adequá-lo às necessidades do mercado. Dava jeito que nestas ocasiões o futebol fosse um programa sem surpresas, pois o apuramento imprevisto de clubes médios e pequenos para finais não atrai publicidade. A chatice é que, não raro, a bola insiste em cair no goto dos descamisados, afectando o negócio. Daí os grupos de reflexão que se dedicam à arte de conciliar a indústria com a imprevisibilidade do produto, que devia ser o seu “core-business” por excelência, mas que às vezes só estorva.
Foi dentro desta linha reflexiva que o antigo guarda-redes Buffon propôs o alteamento das balizas. Fê-lo não como membro dum think-tank oficial mas como pesquisador voluntário de soluções para um espectáculo mais atractivo. E a que conclusões chegou o italiano? Que os avanços científicos em áreas como o nutricionismo e a motricivindo
dade humana fizeram subir a altura média dos guardaredes nas últimas décadas, ao passo que as medidas das balizas se mantêm inalteráveis desde fins do século dezanove. Ou seja, o guardaredes, ao tornar-se um atleta mais elástico e completo, assumiu uma espécie de omnipresença inconveniente na baliza, baixando o rácio de golos. Com a baliza mais alta, o guarda-redes seria de novo vulnerável e o ketchup jorraria, a bem do espectáculo. Rivelino, craque dos anos setenta e hoje treinador dos que o seu pé esquerdo atormentava com efeitos quase bilharísticos, discordou de Buffon. Para ele, o menor índice golos que agora se regista não deve ser atribuído a guarda-redes mais espadaúdos, mas a novas gerações de avançados e médios que deixaram de cultivar o remate de fora da área, técnica que tem
a perder-se, talvez porque a meia distância denote falta de argumentos para se marcar golos em jogo organizado.
Ao estudo de Buffon só faltou propor balizas com rodas, para termos um espectáculo mais catita. Por muito que sondem o mistério do futebol, tudo se resume ao talento individual, à força colectiva, ao erro, à bola no poste rolando sobre a linha. Não sei se este jogo resistirá a tanto estudo para se tornar um artigo mercantil mais optimizado, mas, enquanto houver mochilas no recreio duma escola e pedras numa calçada a servir de baliza, a sua força vital estará garantida.
Os desígnios do futebol permanecem insondáveis - por muito que os executivos tentem adequá-lo às necessidades do mercado. Não raro, a bola insiste em cair no goto dos descamisados
Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadamente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães