O Jogo

Ponham rodas nas balizas

- Carlos Tê O autor optou por escrever na ortografia antiga

Oespírito desmanchap­razeres do futebol voltou a fazer das suas, desta vez em Leiria, quando o país e os publicitár­ios afiavam o dente para uma final entre Sporting e Benfica – apimentada pela peixeirada de acusações sobre cambalacho­s impensávei­s em gente tão virtuosa como a da segunda circular. Consta que a Liga pretendia embrulhar a final desejada em papel de luxo e enviá-la a Meca com lacinho, esperando que o califado da bola adjudicass­e a próxima edição, já que peregrinar àquelas paragens é tendência actual da indústria espanhola e italiana, como se viu pelas super taças lá disputadas este mês. Mas se já é difícil vender um Braga-Estoril a portuguese­s, imagine-se a sauditas. Culpas? Só dos desígnios do futebol, que permanecem insondávei­s – por muito que os executivos tentem adequá-lo às necessidad­es do mercado. Dava jeito que nestas ocasiões o futebol fosse um programa sem surpresas, pois o apuramento imprevisto de clubes médios e pequenos para finais não atrai publicidad­e. A chatice é que, não raro, a bola insiste em cair no goto dos descamisad­os, afectando o negócio. Daí os grupos de reflexão que se dedicam à arte de conciliar a indústria com a imprevisib­ilidade do produto, que devia ser o seu “core-business” por excelência, mas que às vezes só estorva.

Foi dentro desta linha reflexiva que o antigo guarda-redes Buffon propôs o alteamento das balizas. Fê-lo não como membro dum think-tank oficial mas como pesquisado­r voluntário de soluções para um espectácul­o mais atractivo. E a que conclusões chegou o italiano? Que os avanços científico­s em áreas como o nutricioni­smo e a motricivin­do

dade humana fizeram subir a altura média dos guardarede­s nas últimas décadas, ao passo que as medidas das balizas se mantêm inalteráve­is desde fins do século dezanove. Ou seja, o guardarede­s, ao tornar-se um atleta mais elástico e completo, assumiu uma espécie de omnipresen­ça inconvenie­nte na baliza, baixando o rácio de golos. Com a baliza mais alta, o guarda-redes seria de novo vulnerável e o ketchup jorraria, a bem do espectácul­o. Rivelino, craque dos anos setenta e hoje treinador dos que o seu pé esquerdo atormentav­a com efeitos quase bilharísti­cos, discordou de Buffon. Para ele, o menor índice golos que agora se regista não deve ser atribuído a guarda-redes mais espadaúdos, mas a novas gerações de avançados e médios que deixaram de cultivar o remate de fora da área, técnica que tem

a perder-se, talvez porque a meia distância denote falta de argumentos para se marcar golos em jogo organizado.

Ao estudo de Buffon só faltou propor balizas com rodas, para termos um espectácul­o mais catita. Por muito que sondem o mistério do futebol, tudo se resume ao talento individual, à força colectiva, ao erro, à bola no poste rolando sobre a linha. Não sei se este jogo resistirá a tanto estudo para se tornar um artigo mercantil mais optimizado, mas, enquanto houver mochilas no recreio duma escola e pedras numa calçada a servir de baliza, a sua força vital estará garantida.

Os desígnios do futebol permanecem insondávei­s - por muito que os executivos tentem adequá-lo às necessidad­es do mercado. Não raro, a bola insiste em cair no goto dos descamisad­os

Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadam­ente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães

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Braga e Estoril furaram as previsões e disputaram a final da Taça da Liga
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Folha Seca

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