“África Minha”: este é um futebol para emoções!
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É quase como fazer voar o imaginário futebolístico. Ver as seleções de expressão lusófona a jogar a CAN no seu estilo de técnica, ginga e até alguma ingenuidade na ansiedade com que encararam os jogos mais decisivos, é como viajar para as raízes africanas dos primeiros tempos em que o futebol português se apresentou ao mundo. Existe, claro, um abismo entre os cada vez mais remotos anos 60 e o ano 2024 do novo milénio, mas vendo os jogos é inevitável pensar que como as nossas equipas deviam aproveitar mais os valores destes territórios em vez de mercados inflacionados e, tantas vezes, sem qualidade semelhante.
2Poderá ser o meu lado emocional a falar mas vendo, em Cabo Verde, as jogadas de velocidade e finta com golo de Ryan Mendes, um avançado com pele de extremo que, aos 34 anos, está no Karagumruk (após andar por outros clubes turcos, Emirados e até no Nottingham em Inglaterra, tendo iniciado carreira em França) ou olhar, em Angola, o pontade-lança Mabululu, n.º 9 forte a atacar a profundidade ou destemido na área com oportunismo goleador, hoje no Itthiad Alexandria do Egito (após toda a carreira em clubes angolanos, Petro, ASA, 1º de Agosto...) sinto que ambos podiam ter feito muitas épocas no nosso futebol num nível alto.
A prospeção e o futebol negócio prefere outros mapas. E, assim, Mabululu, a “onça furiosa” como é conhecido em Angola pela forma como depois festeja os golos simulando os gestos desse felino, nunca conheceu as balizas portuguesas. Muitos só souberam que ele existia ao vê-lo nesta CAN onde, jogando um bom futebol, Cabo Verde e Angola, com uma crescente cultura tática coletiva que tornou as seleções mais competitivas, chegaram até aos quartos de final (caindo apenas, no limite, contra os gigantes Nigéria e Congo).
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Pedro Gonçalves é o homem que reconstruiu desde as bases o futebol angolano mesmo em cima de problemas estruturais constantes. Soube alternar sistemas de três centrais (3x5x2 com Gaspar a chefiar a defesa em passada larga) e o mais estendido 4x4x2 ou 4x3x3 com alas, onde o um-para-um de Gilberto, as diagonais com golo de Gelson Dala ou o poder rompedor de Luvumbo, fizeram sempre dançar as defesas adversárias. No meio-campo, o poder de Show a n.º 6 (embora Bruno Paz, menos forte como pilar defensivo, saia melhor a jogar) e Estrela a apoiar o chefe-tático Fredy, reconvertido (após brilhar como avançado rápido no Belenenses) nesta fase da carreira, aos 33 anos, em médio-centro (joga hoje no Eyupspor). Sabe temporizar com a bola e revelando a sua experiência foi decisivo para equilibrar o bloco da equipa nos movimentos de subirdescer em campo de forma junta.
4Cabo Verde é das seleções africanas que mais cresceu nas últimas décadas. Após um período a procurar jogadores por todo o mundo que (filhos de segundas e terceiras gerações de emigrantes) pudessem jogar pela sua seleção, tem agora um onze compacto e um projeto de futebol nacional guiado pelo carismático técnico Pedro Brito, o “Bubista” (como é conhecido pela ilha da Boa Vista onde nasceu). Conhecedor profundo da mentalidade do jogador cabo-verdiano, formou um onze equilibrado entre o lado tático do meiocampo (controlado pelo pivô-trinco Kevin Pina e a criatividade quase de “10” de Jamiro, ficando Deroy ou Rocha Santos a equilibrar como “8”) e o lado mais agitador-criativo do ataque (com Ryan Mendes na ala direita, Jovane a fletir desde a esquerda e Bebé n.º 9 solto em busca de espaços de explosão).
Foi difícil controlar a ansiedade nos jogos decisivos mas com centrais Logan e Pico a revelarem sentido posicional (mantendo sempre defesa a “4” completa sem deixar subir muito os laterais) soube manter-se taticamente equilibrada. Só caiu nas decisão por penáltis, momento em que o coração cabo-verdiano não aguentou a subida vertiginosa das suas batidas cardíacas. A qualidade do seu jogo já ficara, porém, marcada em terras marfinenses.
“O mundo novo do futebol de Cabo Verde e Angola”