O Senhor dos Anéis
Continuo a ser fã de Mourinho, apesar de algumas opções que fez, como treinar Tottenham e Roma, de onde saiu há pouco com a rara distinção de ter os adeptos consigo na hora do despedimento – e atendendo ao futebol insípido que a equipa jogava. No topo da insipidez reluzia a primeira edição da Liga Conferência, o único título europeu da Roma, tendo ficado a um penalty de lhe dar o segundo na época seguinte, a Liga Europa. Indiferentes a tudo, e fartos da polémica que o acompanha, expulsões, castigos, os donos americanos do clube passaram-lhe a guia de marcha, e ele acusou-os de não cumprirem promessas e quererem o êxito com pouco investimento.
Os detractores falam de métodos ultrapassados, como se o futebol tenha evoluído ao ponto de decretar a obsolescência de quem tanto o enriqueceu nos últimos anos. Houve, sim, planteis sofríveis e cada menos dispostos a encarnar a sua filosofia de faca nos dentes. O Materazzi de hoje não choraria ao ver partir o timoneiro da sua glória – compraria um rollex personalizado e um bólide mais potente. O Materazzi humilde e grato morreu. Em Itália, dizem que Mourinho deixou no cacifo do capitão, Pellegrini, o anel oferecido pela equipa após a conquista da taça Conferência, com uma nota: “devolvam-mo quando forem homens.” A ser verdade, a história pertence mais ao foro dos romances de
cavalaria do que ao foro do futebol. Incapaz de forjar narrativas de empolgamento que levem o jogador mediano a dar o que não tem para transcender a mediania, Mourinho propõe códigos de honra e pactos de sangue firmados no balneário, entre banhos e massagens. É um senhor dos anéis traído quando os discípulos falham a aplicação do selo mágico.
No entanto, abraça projectos sem hipóteses perante rivais que contratam os melhores. Ao aceitar essa desvantagem, parece desprezar majestaticamente o fracasso que a expectativa do seu nome amplifica. Isso tem o seu quê de fascinante. Move-o a vertigem do banco, o fervor da competição, por isso ele prossegue, insiste, sobrevive num tempo em que o futebol se vai reconfigurando na espuma industrial do streaming. E ao fã que o segue de longe com atenção, à falta de triunfos, restam as histórias que circulam sobre ele, épicas, pícaras, quixotescas. Schmelzer, antigo jogador do Dortmund, revelou que, num jogo contra o Real Mardid em 2010, ao fazer um lançamento lateral, foi abordado por Mourinho como se lhe desse instruções: “Diz ao
Ozil para ser mais rápido no meio campo.” Schmelzer achou que era uma provocação e ignorou-o. Porém, no calor do jogo, deu consigo a passar o recado ao compatriota e opositor. Mais espantoso, foi ver Ozil acenando para o banco, como se fosse normal receber indicações pela boca dum adversário. E o incrível, nota Marcel Schmelzer, foi que, com o jogo em 2-1 para o Borussia, Ozil empatou no último minuto.
Não importa apurar o quanto de lenda e realidade há nestas histórias. Importa é que se contam. Daí que o lugar de Mourinho no panteão da bola terá o melhor mármore e o melhor alabastro.
Mourinho propõe códigos de honra e pactos de sangue firmados no balneário, entre banhos e massagens. É um senhor dos anéis traído quando os discípulos falham