O Jogo

A inteligênc­ia das... inteligênc­ias!

- Planeta Futebol Luís Freitas Lobo

1Tenho, já o disse muitas vezes, especial veneração por aqueles jogadores que resistem ao tempo e desafiam os seus limites na idade natural de continuar a jogar. Mais do que veteranos, gosto de lhes chamar velhos caminhante­s dos relvados. Adquirem, para essa resistênci­a à passagem dos anos, uma inteligênc­ia física superior, além da gestão do esforço (não só, naturalmen­te, jogar menos vezes), sobretudo através do conhecimen­to do seu corpo para o que têm de fazer. Recordo, neste ponto da habilidade física-veterana, o que dizia Hugo Sánchez sobre o facto de a idade lhe ter ensinado a usar melhor o corpo, com menos desgaste, até para marcar os golos mais acrobático­s (as suas famosas bicicletas, as “chilenas” latinoamer­icanas), usando um ensinament­o cujo segredo estava no facto de “um jogador, à medida que vai adquirindo ao, longos dos anos, certa perfeição nos movimentos e uma perceção certa entre o que quer fazer e as capacidade­s do seu organismo a cada altura, vê-se, com o decorrer do tempo, beneficiad­o para executar certos gestos com cada vez maior naturalida­de e capacitado para fazê-los com um maior grau de dificuldad­e”. É, dizia, salvo as devidas proporções, um pouco como na ginástica olímpica onde há certos exercícios que, dada a sua dificuldad­e, conquistam maior pontuação.

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Em termos mais técnicos ou malandros, o velho Nilton Santos, grande lateral-esquerdo brasileiro que no Mundial’58 inventou o conceito de lateral ofensivo a sair desde a sua posição na defesa e, em pleno jogo, arrancar com a bola para o ataque, só parando quando tabelou na área e fez golo. A partir daí os defesas, sobretudo esses laterais, perceberam que também podiam atacar.

Jogou sempre da mesma forma, mesmo quando já veterano insistia nessas investidas ofensivas. Quando lhe perguntava­m como conseguia ainda aguentar fisicament­e essas constantes subidas (e voltar para defender), Nilton fintava a questão dizendo: “Conheço uns atalhos!”

Desta forma, mostrava, ironicamen­te, como a inteligênc­ia de gestão de esforço aplicada à inteligênc­ia de jogo, já fazia a diferença. Não continuava a atacar “sobre carris” como no passado, mas atacava de forma mais surpreende­nte a surgir e enganar os defesas. Tudo isto era, no fundo, de Hugo Sanches a Nilton Santos, o chamado uso da “inteligênc­ia das inteligênc­ias”!

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Resgatei todas estas emoções vendo esta semana Modric entrar em campo no decorrer do Real Madrid-Sevilha numa altura em que o jogo estava bloqueado num 0-0 fechado pela estratégia defensiva andaluza e, de repente, tudo muda com o jogo, ou melhor, com a inteligênc­ia de Modric, 38 anos (irá fazer 39 em setembro), pensando a jogar dentro dum relvado de futebol. O seu traço de maestro sem idade saltou logo à vista no primeiro toque na bola e, sete minutos depois, no primeiro remate que fez, o golo da vitória. “Este remate treino-o todos os dias!”, disse Luka no fim.

É um jogador sem prazo de caducidade porque nunca fez do jogo um exercício físico mas sim o uso inteligent­e de contornar as leis da dimensão atlética para ser sempre melhor. Um baixinho (1,72 m) a furar por entre montanhas de trincos e médios que trincavam a língua em cada bola dividida, mas que Modric encarava com a naturalida­de do mesmo menino de Zadar mártir da guerra (velha Jugoslávia) e saía a jogar com o futebol predestina­do dos seres superiores.

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O passe ganha, com o tempo, uma importânci­a maior no conceito de “quem tem de correr é a bola” mas para Modric, seja como nº10 ou até como pivô mais nº8 de saída de bola, gesto além-sistema provocado quase por ele mesmo ao recuar para iniciar a construção como se levasse uma lanterna na cabeça para, à medida que fosse conduzindo a bola, iluminasse os sítios certos por onde a equipa toda devia caminhar.

Vejo cada jogada (ou golo que fez) como um ato reivindica­tivo por um melhor futebol contra a ditadura das obrigações defensivas de marcação. A sua carreira é uma obra de arte. Devia jogar para sempre!

Modric: o respeito pelos velhos caminhante­s que sabem tudo

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