A inteligência das... inteligências!
1Tenho, já o disse muitas vezes, especial veneração por aqueles jogadores que resistem ao tempo e desafiam os seus limites na idade natural de continuar a jogar. Mais do que veteranos, gosto de lhes chamar velhos caminhantes dos relvados. Adquirem, para essa resistência à passagem dos anos, uma inteligência física superior, além da gestão do esforço (não só, naturalmente, jogar menos vezes), sobretudo através do conhecimento do seu corpo para o que têm de fazer. Recordo, neste ponto da habilidade física-veterana, o que dizia Hugo Sánchez sobre o facto de a idade lhe ter ensinado a usar melhor o corpo, com menos desgaste, até para marcar os golos mais acrobáticos (as suas famosas bicicletas, as “chilenas” latinoamericanas), usando um ensinamento cujo segredo estava no facto de “um jogador, à medida que vai adquirindo ao, longos dos anos, certa perfeição nos movimentos e uma perceção certa entre o que quer fazer e as capacidades do seu organismo a cada altura, vê-se, com o decorrer do tempo, beneficiado para executar certos gestos com cada vez maior naturalidade e capacitado para fazê-los com um maior grau de dificuldade”. É, dizia, salvo as devidas proporções, um pouco como na ginástica olímpica onde há certos exercícios que, dada a sua dificuldade, conquistam maior pontuação.
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Em termos mais técnicos ou malandros, o velho Nilton Santos, grande lateral-esquerdo brasileiro que no Mundial’58 inventou o conceito de lateral ofensivo a sair desde a sua posição na defesa e, em pleno jogo, arrancar com a bola para o ataque, só parando quando tabelou na área e fez golo. A partir daí os defesas, sobretudo esses laterais, perceberam que também podiam atacar.
Jogou sempre da mesma forma, mesmo quando já veterano insistia nessas investidas ofensivas. Quando lhe perguntavam como conseguia ainda aguentar fisicamente essas constantes subidas (e voltar para defender), Nilton fintava a questão dizendo: “Conheço uns atalhos!”
Desta forma, mostrava, ironicamente, como a inteligência de gestão de esforço aplicada à inteligência de jogo, já fazia a diferença. Não continuava a atacar “sobre carris” como no passado, mas atacava de forma mais surpreendente a surgir e enganar os defesas. Tudo isto era, no fundo, de Hugo Sanches a Nilton Santos, o chamado uso da “inteligência das inteligências”!
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Resgatei todas estas emoções vendo esta semana Modric entrar em campo no decorrer do Real Madrid-Sevilha numa altura em que o jogo estava bloqueado num 0-0 fechado pela estratégia defensiva andaluza e, de repente, tudo muda com o jogo, ou melhor, com a inteligência de Modric, 38 anos (irá fazer 39 em setembro), pensando a jogar dentro dum relvado de futebol. O seu traço de maestro sem idade saltou logo à vista no primeiro toque na bola e, sete minutos depois, no primeiro remate que fez, o golo da vitória. “Este remate treino-o todos os dias!”, disse Luka no fim.
É um jogador sem prazo de caducidade porque nunca fez do jogo um exercício físico mas sim o uso inteligente de contornar as leis da dimensão atlética para ser sempre melhor. Um baixinho (1,72 m) a furar por entre montanhas de trincos e médios que trincavam a língua em cada bola dividida, mas que Modric encarava com a naturalidade do mesmo menino de Zadar mártir da guerra (velha Jugoslávia) e saía a jogar com o futebol predestinado dos seres superiores.
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O passe ganha, com o tempo, uma importância maior no conceito de “quem tem de correr é a bola” mas para Modric, seja como nº10 ou até como pivô mais nº8 de saída de bola, gesto além-sistema provocado quase por ele mesmo ao recuar para iniciar a construção como se levasse uma lanterna na cabeça para, à medida que fosse conduzindo a bola, iluminasse os sítios certos por onde a equipa toda devia caminhar.
Vejo cada jogada (ou golo que fez) como um ato reivindicativo por um melhor futebol contra a ditadura das obrigações defensivas de marcação. A sua carreira é uma obra de arte. Devia jogar para sempre!
Modric: o respeito pelos velhos caminhantes que sabem tudo