O Jogo

Crónica forasteira do Porto-Benfica

- Carlos Tê O autor optou por escrever na ortografia antiga

Éuma via-sacra encontrar um poiso para assistir a um jogo imperdível no estrangeir­o. Já me tinha acontecido em São Paulo, onde mão amiga me levou a um bar por via dum Málaga-Porto de má memória, para a Champions, no tempo do Vítor Pereira.

Desta vez, outra mão amiga levou-me a um restaurant­e português em Brixton, na periferia sul de Londres, terra de reggae e de ska, coração da diáspora jamaicana em Inglaterra.

É por aí que fica o Tapas FC, e o emblema na tabuleta da rua não dá azo a engano. O covil londrino do dragão parecia o poiso ideal para ver o último Porto-Benfica, mas, mesmo chegando com antecedênc­ia, fui brindado com uma surpresa desanimado­ra: tudo reservado. Tentei a solidaried­ade portista, mas o estalajade­iro declarou-se de mãos atadas e aconselhou-me Stockwell, mais abaixo, abundante em restaurant­es portuguese­s. Em Stockwell, conhecido por Little Portugal, desaguei no Barros, de boa luz e ementa, e o mesmo olhar compadecid­o e impotente do dono, que me recomendou um outro, logo na esquina seguinte, soturno mas com espaço, e umas lulas grelhadas que só um restaurant­e português podia oferecer.

Com o Sporting-Farense perto do fim, a clientela foi entrando, ruidosa e trajada a rigor. Tinha caído na toca da águia e, até a bola rolar, foi um festival de vernáculo, atoardas, tramoias portistas, trocadilho­s, o esplendor do cascão do futebol. Augurei uma noite para esquecer, bico calado, lugar hostil, um mau jogo. De repente, golo! A sala gelou e não houve como amarfanhar a emoção. O grito mal contido teve o efeito dum espirro numa missa de sétimo dia. Um operário cabo-verdiano fez uma observação de La Palisse: temos cá portistas! Na sua voz não havia nada de ameaçador, apenas constataçã­o e espanto.

O resultado avolumou-se, a assistênci­a foi desertando, cabisbaixa, zurzindo Schmidt até as orelhas lhe ficarem em brasa. Permanecer­am dois fieis, entre eles o cabo-verdiano que, com mão calejada e grossa, me deu os parabéns pela vitória – que relativize­i com fair play solidário, ao retorquir que haveria sempre um Arouca ou um Rio Ave para me devolver à terra. O outro, de manga curta e braço profusamen­te tatuado, atestou a limpeza do jogo e desejou sorte para o Arsenal, na zona norte. Despedimo-nos no subúrbio daquela grande metrópole. O futebol foi o que devia ser sempre: rivalidade fraterna e mordaz. Lembrei-me deste momento ao saber da morte do António Pedro Vasconcelo­s, ilustre benfiquist­a com quem jantei algumas vezes por causa dum projecto que não saiu do papel. A meia hora inicial desses encontros era sempre dedicada a pôr em dia as contas da bola, tricas, tácticas, só depois vinha o resto. Com mais ou menos palavras caras, essa meia hora de conversa era idêntica à que tive com aqueles emigrantes em Stockwell, um tópico capaz de afligir e arrebatar pedreiros, cineastas, músicos, que sociólogos e antropólog­os estudam com as suas lupas. Até sempre António, vemonos por aí numa esplanada da eternidade a discutir um Porto-Benfica e um Scorsese qualquer.

Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadam­ente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães

Até sempre, António [Pedro Vasconcelo­s], vemo-nos por aí numa esplanada a discutir um Porto-Benfica ou um Scorsese qualquer”

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FC Porto bateu o Benfica por números bastante expressivo­s
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