Crónica forasteira do Porto-Benfica
Éuma via-sacra encontrar um poiso para assistir a um jogo imperdível no estrangeiro. Já me tinha acontecido em São Paulo, onde mão amiga me levou a um bar por via dum Málaga-Porto de má memória, para a Champions, no tempo do Vítor Pereira.
Desta vez, outra mão amiga levou-me a um restaurante português em Brixton, na periferia sul de Londres, terra de reggae e de ska, coração da diáspora jamaicana em Inglaterra.
É por aí que fica o Tapas FC, e o emblema na tabuleta da rua não dá azo a engano. O covil londrino do dragão parecia o poiso ideal para ver o último Porto-Benfica, mas, mesmo chegando com antecedência, fui brindado com uma surpresa desanimadora: tudo reservado. Tentei a solidariedade portista, mas o estalajadeiro declarou-se de mãos atadas e aconselhou-me Stockwell, mais abaixo, abundante em restaurantes portugueses. Em Stockwell, conhecido por Little Portugal, desaguei no Barros, de boa luz e ementa, e o mesmo olhar compadecido e impotente do dono, que me recomendou um outro, logo na esquina seguinte, soturno mas com espaço, e umas lulas grelhadas que só um restaurante português podia oferecer.
Com o Sporting-Farense perto do fim, a clientela foi entrando, ruidosa e trajada a rigor. Tinha caído na toca da águia e, até a bola rolar, foi um festival de vernáculo, atoardas, tramoias portistas, trocadilhos, o esplendor do cascão do futebol. Augurei uma noite para esquecer, bico calado, lugar hostil, um mau jogo. De repente, golo! A sala gelou e não houve como amarfanhar a emoção. O grito mal contido teve o efeito dum espirro numa missa de sétimo dia. Um operário cabo-verdiano fez uma observação de La Palisse: temos cá portistas! Na sua voz não havia nada de ameaçador, apenas constatação e espanto.
O resultado avolumou-se, a assistência foi desertando, cabisbaixa, zurzindo Schmidt até as orelhas lhe ficarem em brasa. Permaneceram dois fieis, entre eles o cabo-verdiano que, com mão calejada e grossa, me deu os parabéns pela vitória – que relativizei com fair play solidário, ao retorquir que haveria sempre um Arouca ou um Rio Ave para me devolver à terra. O outro, de manga curta e braço profusamente tatuado, atestou a limpeza do jogo e desejou sorte para o Arsenal, na zona norte. Despedimo-nos no subúrbio daquela grande metrópole. O futebol foi o que devia ser sempre: rivalidade fraterna e mordaz. Lembrei-me deste momento ao saber da morte do António Pedro Vasconcelos, ilustre benfiquista com quem jantei algumas vezes por causa dum projecto que não saiu do papel. A meia hora inicial desses encontros era sempre dedicada a pôr em dia as contas da bola, tricas, tácticas, só depois vinha o resto. Com mais ou menos palavras caras, essa meia hora de conversa era idêntica à que tive com aqueles emigrantes em Stockwell, um tópico capaz de afligir e arrebatar pedreiros, cineastas, músicos, que sociólogos e antropólogos estudam com as suas lupas. Até sempre António, vemonos por aí numa esplanada da eternidade a discutir um Porto-Benfica e um Scorsese qualquer.
Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadamente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães
Até sempre, António [Pedro Vasconcelos], vemo-nos por aí numa esplanada a discutir um Porto-Benfica ou um Scorsese qualquer”