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TENHO MEDO DO FUTURO

- Pedro Aniceto aniceto@mac.com

Tenho medo do futuro. Isto acontece-me com alguma frequência, não por causa das Gretas desta vida, mas provavelme­nte porque o meu futuro já teve horizontes mais vastos. A verdade é que tenho algum receio de para onde vamos, enquanto consumidor­es. Há pouco menos de vinte anos, nós, os ditos consumidor­es, apoiávamo-nos fortemente na rede tradiciona­l de comércio (não confundir com comércio tradiciona­l). Os revendedor­es de informátic­a eram vendedores e consultore­s, técnicos e pedagogos. Pagávamos o que pagávamos e, na margem, estava implícito um valor de acompanham­ento do cliente. Na verdade há quarenta anos “casávamo-nos” com o vendedor. Era uma verdadeira violência para o vendedor, um descanso para o consumidor. Felizmente, isso foi mudando e o casamento foi mudando para união de facto e, mais recentemen­te, para um ‘eu na minha e tu na tua’. Não era preciso ter mudado tanto… na verdade, a tal vida conjugal aconteceu devido ao comércio online. Deixámos de comprar soluções, adquirimos online as caixas. Fomo-nos distancian­do. Passámos a ser amigos coloridos. Namoramos sem vergonha alguma ou o mais ténue sentimento de culpa com o fabricante. Por vezes pergunto a amigos, a quem não reconheço as suas últimas aquisições, onde compraram algo e, sobretudo, as razões da “traição”. Não a vêem como grave. «Comprei por aí online», «Oh pá, estava a precisar de um restyling no hardware…». Não pedimos preço ao fornecedor de sempre (“de sempre” é, como imaginam, um espaço temporal cada vez mais estreito).

Tenho medo do futuro.

Isto acontece-me com alguma frequência, não por causa das Gretas desta vida, mas provavelme­nte porque o meu futuro já teve horizontes mais vastos.

O cliente passou a recorrer à nossa amizade colorida quando não percebe bem o conteúdo da caixa que quer comprar, promete-nos amor eterno mas atraiçoa-nos com o preço uns cêntimos mais barato no primeiro site que encontrar . Ou, quando tem problemas, com a caixinha comprada algures. Alguns deles vêem-nos como médicos no serviço de urgência. Trazem-nos as amantes enfermas e pedem-nos que tratemos delas como se também fossem nossas amantes. Porventura, é a isto que se chama ‘ter profission­alismo’. Até ao dia em que os tradiciona­is vendedores já lá não estiverem. Tenho a certeza de que técnicos e comerciais do grande consumo hão-de vir um dia a ser vistos como aquele velhinho artesão que ainda coloca meias solas nos sapatos que amamos. Até desaparece­rem. E aí, irão falar com o call center que lhes venderá uma caixa nova.

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