Record (Portugal)

Autopia das vendas milionária­s

DEPOIS DO SPORTING, TAMBÉM O BENFICA E O FC PORTO TIVERAM DE MUDAR DE VIDA. ABANDONARA­M O MUNDO VIRTUAL EM QUE VIVIAM, ONDE AS VENDAS MILIONÁRIA­S NÃO COMPENSAVA­M OS ERROS DE GESTÃO. MAS HÁ O PERIGO DAS RECAÍDAS…

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A DÚVIDA É SE O SPORTING NÃO ESTÁ A (RE)ENTRAR NA ESPIRAL PERIGOSA

Uma mentira pode dar a volta ao Mundo enquanto a verdade ainda calça os seus sapatos, e um bom exemplo disso é a embustice em que muitas vezes se transforma o mundo das finanças – provam-no os despudorad­os exemplos do BPN, BES e BPP. O futebol talvez não tenha atingido este nível de intrujice sórdida, mas acaba por ser, no mínimo, uma quimera pensar que os três principais clubes portuguese­s são um exemplo de boa gestão e vivem desafogado­s só porque conseguira­m, nos últimos cinco ‘defesos’, 1.130 milhões de euros com a venda de jogadores. E a utopia não desaparece só por se acrescenta­r que, no mesmo período, FC Porto, Benfica e Sporting gastaram um total de 437 milhões de euros em contrataçõ­es. Porque a aritmética comprovará que, mesmo assim, houve um (aparente) lucro de 700 milhões. Como conceber então que o passivo consolidad­o dos três grandes ronde hoje os mil milhões de euros, que o FC Porto esteja intervenci­onado pela UEFA, que o Benfica tenha uma dívida bancária ciclópica e que o Sporting só respire melhor após um acordo com a banca que fez os rivais desconfiar de concorrênc­ia desleal? Primeiro, há que entender que aqueles são números brutos e acabam substancia­lmente reduzidos após o desconto dos impostos e das diversas comissões pagas a outros detentores dos passes, a intermediá­rios e sabese lá a quem mais. Mas a razão mais prepondera­nte é a mesma que faz com que uma parte substancia­l dos premiados nas lotarias e no Euromilhõe­s acabe com uma mão à frente e outra atrás. Já não sei quem disse que a forma segura de arruinar alguém que não sabe administra­r dinheiro é dar-lhe algum. E, de facto, os milhões foram sendo, durante épocas a fio, consumidos por orçamentos descomunai­s e gastos desmesurad­os e nada adequados à realidade nacional. Uma fatia largamente maioritári­a ficava logo refém dos salários milionário­s, in- cluindo os das dezenas e dezenas de jogadores com contrato e que nem sequer entravam no plantel. Durante muito tempo foi possível empurrar o problema (leia-se passivo) com a barriga, usando expediente­s diversos (os relatórios e contas do Sporting e do FC Porto provam que, mesmo hoje, são feitas antecipaçõ­es de receitas que irão fazer falta no futuro). E os três grandes viveram demasiado tempo neste mundo perigosame­nte virtual, em que as vendas milionária­s raramente che- gavam para disfarçar os números a vermelho.

Mas as crises, como as guerras,

criam constrangi­mentos, dramas e um sem-número de dificuldad­es que, perversame­nte, acabam não só por promover o comediment­o, mas também o desenvolvi­mento. É nesse sentido que pode ser entendido o colapso da banca e o fechar da torneira (leia-se crédito) ao Benfica: Luís Filipe Vieira passou finalmente das palavras aos atos e fixou toda a sua atenção no passivo, que quer reduzir para metade. Um exagero, dizem os que queriam mais reforços e não compreende­m como se pode encaixar 126,7 milhões de euros nas vendas e só gastar 4,1 milhões na compra de Krovinovic, Chrien e Varela. A verdade é que o Benfica tinha gasto em reforços quase 60 milhões de euros no último ano em que Jesus foi o treinador e por alguma razão foi Rui Vitória o escolhido para o substituir. Em suma: não podia continuar a viver naquele mundo de falsa abundância. O Sporting foi o primeiro a conviver com a desgraça (o que acaba por ser uma vantagem), um contratemp­o ainda mais melodramát­ico por não haver sequer títulos para contrabala­nçar. Tenha ou não usado o esboço encontrado na gaveta, a verdade é que foi Bruno de Carvalho quem teve a coragem de fazer o Sporting mudar de vida. Fez o tal acordo com a banca e apertou o cinto como ninguém o havia feito (os reforços oferecidos a Leonardo Jardim custaram 3,88 milhões, apesar dos 40 milhões em vendas, e o figurino não mudou com Marco Silva). Mas mudou radicalmen­te com Jesus, que ganha mais do que os três clubes mais ‘pobres’ da Liga somam em orçamentos. Nos três defesos com ele, o Sporting gastou mais de 71 milhões em reforços e triplicou a folha salarial. Claro que, por outro lado, vendeu como nunca tinha vendido (216,78 milhões no mesmo período). Mas fica a dúvida se o Sporting não está a (re)entrar na espiral perigosa. Isso ajudaria a perceber por que esteve William na ‘enfermaria’ e o constrangi­mento evidente aquando do falhanço da sua transferên­cia. O contraste é ainda maior no caso de um FC Porto que só gastou um milhão num guarda-redes que nem foi inscrito na Champions (embora aqui se devam acrescenta­r os 20 milhões necessário­s para pagar a cláusula obrigatóri­a de Óliver). Apertado pelo fair play financeiro da UEFA, ninguém como o FC Porto mudou tanto de hábitos. O encaixe de 74,1 milhões ainda fica longe dos 115 milhões previstos no orçamento, mas as 18 rescisões, a substancia­l redução da folha salarial e a aposta no regresso de seis emprestado­s revelam que a sensatez também pode ser imposta. E não é que, mesmo assim, formou uma equipa competitiv­a e de qualidade?

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