O catenaccio de Deus
CHIELLINI ACHA QUE O ‘GUARDIOLISMO’ ARRUINOU OS DEFESAS, MAS EM 2010 HOUVE UM PORTUGUÊS QUE PEGOU NUMA EQUIPA SEM ITALIANOS E MOSTROU COMO SE DEFENDE
século XXI, que nada tem a haver com os sistemas ultradefensivos que deram durante décadas à Itália muitos êxitos a nível de clubes e seleção. Acultura defensiva do jogador italiano foi a chave de todos estes êxitos, mas o ‘catenaccio’ tem os dias contados no futebol atual e Itália tardará anos para voltar a ser a grande potência da Europa como foi no passado.
Adisciplinatáticae inteligência que tinham os melhores defesas italianos da história, como por exemplo Cabrini, Maldini, Baresi, Costacurta, Gentile, Scirea e Cannavaro, entre muitos outros, dificilmente voltaremos a ver. Os últimos três craques e representantes desta cultura futebolística italiana são Chiellini, Barzagli e Bonucci. Quando o último deles se retirar, a melhor universidade de filosofia defensiva da história do futebol fechará para sempre.
Em2010, nodiaseguinte à apresentação oficial de José Mourinho como treinador do Real Madrid, ele ligou-me e convidou-me para jantar no hotel onde estava hospedado com o grande Silvino e o Rui Faria. Recordo-me que uma das primeiras perguntas que lhe fiz foi sobre o jogo da segunda mão das meias-finais da Champions League, entre o Barcelona e o Inter Milão, que tinha sido poucas semanas antes. Os culés tinham tido 86 por cento da posse de bola, uma barbaridade, mas mais incrível ainda foi que os italianos jogaram com menos um a partir dos 28 minutos, altura em que Thiago Motta foi expulso. Mesmo assim, Messi e companhia praticamente não tiveram oportunidades claras de golo.
Naquelanoite histórica, os homens do Mourinho só remataram uma vez à baliza, mas defensivamente e taticamente foi o jogo mais perfeito que vi até hoje de uma equipa com 10 jogadores. O Inter passou a eliminatória e acabou por ser campeão da Europa depois de derrotar o Bayern na final. “Zé, o que disseste aos teus jogadores depois da expulsão de Motta?”, perguntei. O génio respondeu-me com outra pergunta: “Sabes qual era o nosso grande inimigo a partir do minuto 28, Paulinho?” “Não”, disse eu. “Abola”, continuou Mourinho. “De cada vez que tivéssemos a bola em nosso poder e a perdêssemos, criávamos o único momento em que o Barcelona nos podia surpreender. Eles com espaços são mortais. Para defender com a máxima perfeição, estar sempre bem colocados e compactos dentro de campo e não cometer nenhum erro defensivo, só tínhamos uma solução. O que disse aos jogadores ao intervalo foi ‘Abola é para eles, a nossa missão é defender e nada mais que defender, hoje esqueçam a bola, porque é o nosso pior inimigo’.” Que génio...
Comoositalianossão amantes de táticas defensivas, para grande parte da imprensa italiana aquele jogo é considerado como o maior feito da história de uma equipa transalpina. Para os adeptos do Inter, foi o catenaccio de Deus.
Acrise quevive hoje o futebol e os jogadores italianos já era muito grave em 2010. Naquela noite de Nou Camp, o onze titular do Mourinho foi: Júlio César (brasileiro), Maicon (brasileiro), Lúcio (brasileiro), Samuel (argentino), Chivu (romeno), Cambiasso (argentino), Zanetti (argentino), Thiago Motta (brasileiro), Sneijder (holandês), Eto’o (camaronês) e Milito (argentino). O Inter é uma equipa de Itália, mas não havia um único italiano no onze titular. O catenaccio foi inventado por eles e vários dos melhores treinadores da história do futebol italiano utilizaram este sistema de jogo, mas nenhum deles fez algo tão grande e perfeito defensivamente como o génio português. Naquela noite em Barcelona, foi mesmo o catenaccio de Deus.