Record (Portugal)

O monólogo de BdC

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O PRESIDENTE DO SPORTING TEM UMA GRANDE QUALIDADE: SABE QUASE SEMPRE DIZER O QUE NÃO DEVE DIZER. COM A CHEGADA DE JESUS, PASSOU A RESPEITAR A AUTONOMIA DO TREINADOR. MAS FALTALHE ENCONTRAR ALGUÉM QUE O AJUDE A TRAVAR A AUTOFAGIA E QUE O FAÇA DESISTIR DAS BATALHAS INÚTEIS. PORQUE, VALHA A VERDADE, NAQUELAS QUE VERDADEIRA­MENTE IMPORTAM AO SPORTING ATÉ NEM SE TEM DADO MAL DE TODO

monólogo de mais de uma hora de Bruno de Carvalho (BdC) para os 300 sócios do Sporting e as câmaras de televisão valeu pelos cinco minutos finais: não se demitiu (também ninguém estava à espera que cumprisse esse propósito), mas voltou a ameaçar demitirse se não forem aprovados os novos estatutos e as alterações ao regulament­o disciplina­r. O líder sportingui­sta garantiu não estar a fazer chantagem, mas sobrelevou o facto de as propostas que irão ser levadas à assembleia geral só poderem ser aprovadas com 75% dos votos, o que, se não é uma forma de extorsão, é, pelo menos, uma óbvia forma de pressão. E o mesmo resultou quando declarou que já há alguém a preparar-se para entrar numa eventual futura corrida eleitoral ou quando asseverou que não se recandidat­ará se houver eleições antecipada­s. O resto da arrastada e enfastiant­e intervençã­o serviu para dizer que se sente restringid­o na sua liberdade pessoal, que é vítima de ofensas gratuitas e que anda há sete anos a ser “humilhado e difamado por sportingui­stas”. Ou seja, depois de termos começado por ouvir a xaropada em que se chegou a queixar de não poder levar a filha ao jardim e de ser destratado num texto de uma peça de teatro, não é totalmente descabido concluir que BdC espera que as alterações propostas nos estatutos e no regulament­o disciplina­r sirvam também para travar os ultrajes e as injúrias de que se diz vítima. BdC já foi muitas vezes acusado de egolatria, mas parece ter chegado a um ponto em que sente dificuldad­e até em lidar com as críticas mais pueris que possam constar num qualquer anónimo post do Facebook (de facto é sempre ele quem acaba por os tornar conhecidos, o mesmo acontecend­o com boa parte dos associados de que ele se queixa). É bem possível que o presidente do Sporting, como tantos outros com idêntico mediatismo no mundo do futebol, tenha razão nalgumas das queixas que apresentou. Mas não pode meter tudo no mesmo saco e cometer delito de opinião, esquecendo-se que provavelme­nte não se teria tornado suficiente­mente conhecido e chegado a presidente do Sporting se tivesse respeitado o comportame­nto imaculado que agora exige a quem o contesta ou simplesmen­te discorda das suas ações ou das suas ideias. Todo este processo, completame­nte escusado, serve para provar que o principal inimigo de BdC é o próprio BdC.

Opresident­e doSporting­tem

umagrande qualidade: sabe quase sempre dizer o que não deve dizer. E esse ruído desnecessá­rio acaba invariavel­mente por ter um efeito boomerang, o que resulta ainda mais perigoso num clube com uma tendência histórica para o masoquismo e para a depressão coletiva. Averdade é que boa parte das suas prédicas e/ou escritos nas redes sociais acabam por ter o resultado diametralm­ente oposto ao pretendido. Em vez da unanimidad­e que BdC parece perseguir de forma imatura e quase perversa junto da nação sportingui­sta, as suas posições empoladas e truculenta­s e a sua pose exagerada e presunçosa acabam por desagradar a uma parte dos muitos que o elegeram, servindo ainda para fazer medrar a oposição interna. Esse comportame­nto rende-lhe obviamente notoriedad­e junto das claques e daqueles que sempre acharam que a civilidade e o bom senso de outros presidente­s contribuír­am para o insucesso desportivo. Mas esses são também aqueles que mais rapidament­e procuram novos gurus quando as derrotas se acumulam. E o líder sportingui­sta, que parece viver permanente­mente com a consciênci­a atormentad­a e à procura de uma redenção impossível, nem sequer se dá conta que é precisamen­te o seu léxico, a sua verve e a sua compostura que mais contribuem para que os seus inegáveis méritos e a sua indiscutív­el serventia não sejam suficiente­mente outorgados. Porque a generalida­de dos sportingui­stas sabe que o Sporting, há cinco anos, correu riscos sérios de bancarrota e tinha uma equipa de futebol desacredit­ada. Sabe também que BdC, utilizando ou não os esquissos do seu antecessor, foi muito hábil na renegociaç­ão da dívida com a banca, não sendo por acaso que os rivais mais diretos se queixam com inveja. Não ignoram igualmente que o atual presidente soube sempre escolher bons treinadore­s, tendo usado a controvers­a e mediática contrataçã­o de Jorge Jesus para fazer crescer a onda de euforia junto da massa adepta. Achegada do ex-técnico do Benfica teve ainda outra consequênc­ia imediata: depois de duas épocas de grande autocontro­lo orçamental e muito recurso à formação, o nível de investimen­to disparou nas últimas três épocas e está hoje na linha do que gastam o FC Porto e o Benfica. Mas nem isso tem impedido o Sporting de apresentar resultados financeiro­s positivos, o que é meritório, mesmo levando em conta a possibilid­ade de mais tarde poder vir a ser criticado por o Sporting continuar a antecipar largos milhões de euros à conta do novo contrato de transmissõ­es televisiva­s. Acontrataç­ão de Jorge Jesus não teve apenas como consequênc­ia a contrataçã­o de jogadores de créditos firmados e a formação de uma equipa competi iva; serviu ainda para que BdC passasse a respeitar a autonomia de um treinador que nunca admitiria o contrário. O que falta agora é BdC encontrar alguém que o ajude a travar esta estranha tendência para a autofagia e o faça desistir das batalhas inúteis. Porque, valha a verdade, naquelas que verdadeira­mente importam ao Sporting até nem se tem dado mal de todo.

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