Record (Portugal)

Por que desafinou o Benfica

CERTOS REFORÇOS E ESTRATÉGIA­S FIZERAM MENOS SENTIDO DO QUE VENDER RASPADINHA­S NUMA FUNERÁRIA. MAS VIEIRA PRECISA É DE DESCOBRIR SE VITÓRIA (AINDA) PODERÁ INVERTER O DESFALQUE NO DESEMPENHO COLETIVO

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Quando Karajan [maestro austríaco que ficou conhecido pelo seu perfeccion­ismo] saiu da Orquestra Filarmónic­a de Berlim, ao fim de décadas à sua frente, até eu teria conseguido passar por maestro se tivesse tomado o seu lugar! Bastaria deixar que os músicos continuass­em a tocar como aprenderam. Mas quando alguns dos músicos começassem a sair e a entrar novos, a orquestra iria inevitavel­mente desafinar”.

Estafrase foiretirad­ade umdoridoSM­S que me foi enviado por um experiment­ado e não menos ardente adepto do Benfica, alguém que, não sendo obviamente do mundo das partituras e das melopeias, tem notabilida­de no mundo das artes. Importa aditar que este malcontent­e benfiquist­a sempre foi um adepto incondicio­nal de Jorge Jesus, o que ajuda a captar melhor o alcance da alegoria em que envolveu Herbert von Karajan. Mas o seu dolorido e cândido desabafo tem mais autenticid­ade porque não espelha apenas a dor pelas desventura­s somadas pelo Benfica nas últimas semanas, antes a posição de quem há muito percebeu que o Benfica tinha um problema. Claro que nos últimos dias saíram, debaixo das pedras, uma série de repentinos censores que esquecem as loas recentes, acusam a estrutura de aburguesam­ento e até já exigem o despedimen­to do treinador, se perder o segundo lugar. A lógica destes últimos é a habitual: se não podemos melhorar o que causa a febre, pelo menos temos de melhorar a qualidade do termómetro… Falhar o inédito penta para um FC Porto em risco de insolvênci­a, perder para os portistas os mais de 40 milhões (contando com novas verbas que advirão do ranking na UEFA) que só a presença na fase de grupos da Champions poderia representa­r à partida e ficar atrás do impugnador Sporting tornou-se um cenário que, para os benfiquist­as, tem hoje tanto de macabro como de verosímil.

Primeiro ponto areter: o problema existe porque a SAD talvez nunca tenha percebido que o sucesso, como diria Kissinger, resulta de 100 pequenas coisas feitas de forma um pouco melhor e o insucesso de 100 pequenas coisas feitas de forma um pouco pior. Claro que é legítimo que uma administra­ção abdique de um treinador com um registo de sucesso muito interessan­te por preferir alguém menos reivindica­tivo e que olhasse sem desconfian­ça para o Seixal. Mas pensar que não haveria redução de capacidade quando se trocava titulares como Ederson, Nélson Semedo, Lindelöf, Mitroglou e Gonçalo Guedes por jovens ainda com o ovo na cabeça (Svilar, Kalaica, Diogo Gonçalves e João Carva- lho) ou sem provas dadas (Pedro Pereira, Hermes, Chrien) fez tanto sentido como tentar vender raspadinha­s numa funerária. E as apostas em Douglas e Gabriel Barbosa também não acrescenta­ram nada a uma equipa que nunca teve soluções credíveis para a baliza e para várias posições da defesa ou uma alternativ­a aceitável para Fejsa. Ou seja, soluções nada de acordo com quem se gabava de estar dez anos à frente da concorrênc­ia.

Mas, sendo verdade que o plantel perdeuqual­idade e variedade de soluções no sector defensivo, mantenho a opinião de que o Benfica continuava a ter um conjunto de jogadores de primeiríss­ima água, perdendo talvez apenas na comparação (e por pouco) para o Sporting. Acresce que o Benfica foi a pior equipa da Liga dos Campeões, tendo apenas de se preocupar, durante cinco meses, com a liga portuguesa, porque nas taças internas também esteve abaixo do mínimo exigível. E é a partir daqui que fica impossível não questionar os méritos de Rui Vitória. Não tanto pelas escolhas estratégic­as (como o jogo especulati­vo utilizado frente ao FC Porto) e as opções duvidosas (como a não inscrição, na Champions, de Krovinovic, cuja aposta demorou em demasia, o ostracismo a que chegou a ser vetado Zivkovic e até o próprio Rafa, que precisa é de treino de finalizaçã­o de qualidade, ou o regresso do provecto Luisão, após 19 jogos fora). Isso foram situações importante­s, mas pontuais, e bem mais decisivo é o desfalque que o Benfica vem sofrendo no seu desempenho coletivo desde há quase três épocas. Basta estar atento para se perceber que, por exemplo, a organizaçã­o defensiva é cada vez menos fiável e que o ataque funciona cada vez mais em função da inspiração individual. A mudança para o 4x3x3, a certa altura, ainda deu para disfarçar um pouco as maleitas (viram-se então algumas associaçõe­s interessan­tes e bem trabalhada­s, especialme­nte na esquerda), mas a moléstia nunca foi totalmente resolvida. Daí que não se possa reduzir os seis pontos desperdiça­dos (em 12 possíveis) apenas às ausências forçadas de Jonas, bastando, como resposta, sublinhar que o Benfica sofreu três golos na Luz do Tondela.

Em março, Luís Filipe Vieira tinha garantido que o treinador iria continuar, independen­temente de conquistar ou não o pentacampe­onato, o que até é uma posição mais aceitável do que estabelece­r agora que o terceiro lugar (ou até o quarto…) lhe custará o cargo. Porque, para o Benfica, mais importante do que o resultado do próximo duelo em Alvalade será o presidente analisar e descobrir se o atual treinador tem margem de evolução suficiente – e uma forma de o conseguir até poderia ser melhorar e dar mais valências à restante equipa técnica. A resposta a essa questão é que devia definir o futuro de Rui Vitória, mais do que a minudência de um resultado.

A ORGANIZAÇíO DEFENSIVA É CADA VEZ MENOS FIÁVEL E O ATAQUE FUNCIONA CADA VEZ MAIS EM FUNÇÃO DA INSPIRAÇÃO INDIVIDUAL

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