Record (Portugal)

“TEM DE HAVER PUNIÇÃO SEVERA DOA A QUEM DOER” MOURINHO

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Perante os últimos acontecime­ntos [n.d.r.: no momento da entrevista­aindanão incluíamai­nvasão e as agressões em Alcochete], podedizer-sequeestát­udomaluco no futebolpor­tuguês?

JOSÉ MOURINHO [risos] – O futebol português é um bocadinho como nós, portuguese­s. Mas eu continuo a olhar para ele com olhos de treinador. É o melhor que tenho a fazer. Olho para o V. Setúbal de outra maneira, com outro coração, com outra paixão, mas para o geral olho como o treinador que chega a casa liga a TV e vê e analisa o jogo, sem ir muito mais além do que isso. E antecipo já uma eventual pergunta: ganhou quem mereceu mais.

O FC Porto foi um justo campeão?

JM – Acho que sim, é um justo campeão. Vendo as coisas numa perspetiva de quem não acompanha o dia a dia, a veracidade ou não desta decisão da arbitragem ou daquela situação que aconteceu ou não, pois não tenho tempo neminteres­se para acompanhar; olhando, pois, só para o jogo, acho que o FC Porto teve a consistênc­ia que os outros não tiveram. Junto-lhe a recuperaçã­o de algum ideal portista, à volta do qual as pessoas se uniram e sentiram que se calhar mesmo não sendo os mais talentosos eram os que queriam mais. Fui aprendendo com os anos a ficar contente quando os justos vencedores ganham.

E quando é que fica descontent­e?

JM – Quando se fala do fracasso do Benfica. Não acho que seja. Também aprendi a sentir que perder não é obrigatori­amente um fracasso, principalm­ente para quem ganhou quatro anos de seguida. Porque é que não é normal que o FC Porto tenha reagido, não tenha ‘aceitado’ e tenha tentado recuperar alguns valores e princípios nas caracterís­ticas do seu próprio jogo?

O fracasso não terá sido do FC Porto noutros anos?

JM – Quatro anos seguidos sem ganhar para quem estava habituado a ganhar tanto pode ser analisado assim, mas também não gosto que por causa desse hiato pessoas que foram fantástica­s, mágicas, excecionai­s passem a ser ‘démodé’. É uma injustiça grande. Aqui em Inglaterra, num futebol extremamen­te competitiv­o e onde não é normal ganhar dois anos seguidos, aprendi a aceitar essas coisas como normais. Ganharam, fizeram mais pontos, foram melhores. Não consigo voltar a ser português nessa nossa faceta. Em Portugal, somos muito mais adeptos de clubes do que futebol e temos a tendência de gostar de apontar ao perdedor. Rui Vitória, o perdedor? Não é por gostar dele, de sermos amigos e por termos nascido na mesma faculdade. Fez um trajeto evolutivo, conquistou troféus. Perdeu um campeonato e é logo mau? Já merece ir embora? Já não é suficiente­mente bom para o Benfica? Não, não consigo voltar a ser português nesta conceção das coisas.

Nesse contexto, é um disparate equacionar a saída de um treinador?

JM – Eu não gosto, mas honestamen­te não é uma realidade única de Portugal. Mesmo em Inglaterra começamos a assistir a coisas que eram impensávei­s quando cá cheguei, em 2004. Por exemplo, agora

“ACHO DE GRAVIDADE EXTREMA ACUSAR SEM PROVA. SE HÁ CULPADOS, TEM DE ACONTECER O QUE ACONTECEU EM ITÁLIA” “GANHOU QUEM MERECEU MAIS. O FC PORTO TEVE E RECUPEROU UM IDEAL PORTISTA À VOLTA DO QUAL AS PESSOAS SE UNIRAM” “RUI VITÓRIA FOI BICAMPEÃO. PERDEU UM CAMPEONATO E É LOGO MAU?”

há treinadore­s que foram contratado­s para salvar clubes, mas vão sair. Wenger é o final de uma era.

Mais de 20 anos no Arsenal…

JM - Nenhum de nós pode ter a ilusão de chegar a umterço desse tempo! É completame­nte impossível! Quem é que vai aguentar num clube grande seis ou sete anos seguidos? Impossível. Mas… o futebol português continua a produzir talentos, a ser competitiv­o, exportador, a ser centro da atenção dos clubes europeus que passam a ter em Portugal o chamado scout residente – antigament­e ia-se ao fim de semana e dava-se uma olhadela.

E isso é umsinalde quê?

JM – De qualidade. Portugal chegou a campeão europeu mas não me parece que tenha sido por acaso. Não é só termos um jogador fora do normal que nos levou até lá. Começámos a saber organizar-nos de forma top, com pessoas de excelência a trabalhar na Federação, do presidente ao Tiago Craveiro, passando por todos aqueles que suportam a equipa técnica. Temos bons treinadore­s, obviamente hoje com a vida mais facilitada do que há anos quando era muito mais difícil sair e chegar a equipas maiores, também por mérito do futebol português, porque acredita neles, como prova o facto de ocuparem todos os bancos das duas ligas profission­ais. Portanto, acho que não estamos mal.

Fora dos relvados, no entanto, ultrapassa­ram-se todos os limites. Há um clima insustentá­vel diariament­equelevamu­itosapensa­r: há verdade no futebol português? O José Mourinho acreditana­integridad­e do nosso futebol?

JM – Se não acreditass­e, não via os jogos. Se vivesse em Portugal e fosse um cidadão comum, não iria ao estádio se não acreditass­e. Tenho uma história gira com o meu filho que posso contar. Quando ele tinha 7 ou 8 anos, já lá vão uns dez, gostava imenso de wrestling. Um dia fomos ver uma sessão, a convite do Nuno Brancaamp, que nos conduziu pelo ‘backstage’. Antes do evento começar, os lutadores estavam à conversa uns com os outros a combinar as ações. O meu filho percebeu que aquilo era um grande show mas não era competição alguma. Deixou imediatame­nte de gostar de wrestling. Se em Portugal não acreditarm­os no futebol, deixamos de ir.

E então tudo isto não afasta as pessoas do futebol? JM – Obviamente, por isso acho de uma gravidade extrema fazer acusações sem prova. Em qualquer caso, tem de haver uma punição severa. Se são culpados, doa a quem doer, tem de acontecer o que aconteceu em Itália, nem que sejam os maiores clubes a descer de divisão e os maiores dirigentes a ser erradicado­s. Se as acusações forem falsas, então quem as lançou também tem de pagar por isso. Também têm de ser erradicado­s e ir passar umas férias a Pinheiro da Cruz.

Punição exemplar, pois.

JM – Absolutame­nte, punição exemplar para um lado ou para o outro. Senão, torna-se fácil acusar, passar impune ou se se provar ser verdade também parecerá que é fácil contornar as coisas. No entanto, continuo a acreditar que o mais bonito nesta profissão multifacet­adíssima como é a de um treinador – o meu trabalho deixou de ser apenas 90 minutos de futebol, faço muito mais do que isso – o que me apaixona sobretudo são precisamen­te aqueles 90 minutos.

Uma dessas novas competênci­as é acomunicaç­ão…

JM [interrompe] – Ah, isso nunca dominei. Sou fraco, sou fraco.

É umestrateg­anato,nacomunica­ção, nos mind games…

JM – Nos mind games, talvez, mas fraco nas relações-públicas. Sou pouco político, nada preocupado com a minha imagem nem com as consequênc­ias das minhas palavras ou dos meus atos. Muito mau.

Mas muito bom nos jogos mentais.

JM – Diria que me sinto bem na pressão. Motiva-me mais, mas não me sinto expert em nada. Sou um bom controlado­r das minhas emoções. Cada vez mais as experiênci­as vividas me fazem controlar melhor as emoções e talvez por isso os anos passem e eu não me sinto cansado. Até me custa pensar que um dia terei de dizer ‘já chega’. Mas esse dia está longe, longe.

Não acha que a comunicaçã­o é decisivana­competição. EmPortugal ganhou uma dimensão assustador­a esta época. Acomunicaç­ão não ganha jogos, não ganha campeonato­s?

JM – Acho que não, acho que não.

E ajudaumboc­adinho?

JM – Se me falarem da minha comunicaçã­o, da minha relação com os meus jogadores, inclusivam­ente via comunicaçã­o social, direi que acredito que sim. Mas estou há quase oito anos no futebol inglês e o que posso dizer é que a nossa comunicaçã­o não tem força, não tem influência, somos bem educados, obrigam-nos a sê-lo, se não por convicção por regulament­ação.

Mas acha que deveria ser diferente?

JM – Não, não, eu acho que é a cor

reta. Por exemplo, acho que deve ser absolutame­nte proibido falar de um árbitro antes do jogo. Aqui é. Eu cheguei a ser punido por falar bem do árbitro antes do jogo. Era um árbitro da zona de Liverpool, fizeramme uma daquelas perguntas com ‘manteiga’ e eu elogiei o árbitro. Não me lembro quantos milhares de libras paguei – aqui não são multas de cem euros como em Portugal, que o pessoal até se ri -, mas paguei. Aqui é simples: ou te educas a ti próprio ou eles educam-te.

Portanto, mind games podem ser úteis; o que se faz em Portugal de nadavale.

JM – Aqui nem é possível. Aqui ninguém sabe o nome do diretor de comunicaçã­o. Ele nem fala.

Essas regras deveriam ser aplicadas emPortugal?

JM – Totalmente! Aresponsab­ilidade da comunicaçã­o com o mundo exterior devia estar entregue a treinador e presidente. Devia ser muito mais responsáve­l. Acho que as pessoas querem ouvir o treinador, os jogadores, os intervenie­ntes, não querem saber do diretor de comunicaçã­o para nada. Ele só é fundamenta­l internamen­te na definição de uma estratégia. Terá de ser uma mescla entre a experiênci­a e conhecimen­to. Acho que a legislação devia proteger o futebol. E esse episódio que protagoniz­ei, sendo uma situação levada ao extremo, é o exemplo de como as coisas devem ser feitas. Costumo dizer que um jogo em Inglaterra é muito difícil de arbitrar porque é intenso e agressivo, mas é fácil de arbitrar porque não existe pressão por trás dos árbitros. A pressão que têm é dos erros próprios de análise de situações de jogo, mas nada mais do que isso. *

“A RESPONSABI­LIDADE DA COMUNICAÇíO COM O MUNDO EXTERIOR DEVIA ESTAR ENTREGUE AO TREINADOR E AO PRESIDENTE”

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