Ninguém muda de pele como o Real de Zidane
A LIGA DOS CAMPEÕES TEM-SE TORNADO, CADA VEZ MAIS, O TERRITÓRIO PREDILETO DOS MADRIDISTAS, COMO SE EXERCESSEM UM DIREITO NATURAL
Zinedine Zidane converteu o Real Madrid numa incrível máquina de ganhar, o que não deixa de ser desconcertante num treinador que (ainda) não inventa táticas e que, mais do que uma ideia de jogo, parece ter a ardileza necessária para gerir e rentabilizar como ninguém um lote único de jogadores com qualidade hiperbólica. Foi com o seu eterno sorriso e com aquele discurso que tem tanto de aveludado como desarmante que o técnico francês ganhou nove títulos em apenas dois anos e meio, quatro deles esta época (Champions, Supertaça Europeia, Supertaça espanhola e Mundial de Clubes). A tendência dos últimos 50 anos diz-nos que a esmagadora maioria dos grandes treinadores conseguiram os seus melhores êxitos nas etapas iniciais das suas carreiras. Mas o que Zidane tem vindo a conseguir vai muito para além disso. Porque não é normal alguém que só tinha tido uma breve experiência no Castilla antes de ser chamado, em janeiro de 2016, para colar os cacos deixados por Benítez se tenha transformado num glutão capaz de bater todos os recordes de Ferguson, Guardiola, Mourinho, Del Bosque, Heynckes, Hitzfelfd ou Sacchi. Esta equipa venceu quatro Cham-
pions em cinco anos e, no historial da principal prova do calendário mundial de clubes, só perde para o Real de Di Stéfano, Gento e Puskas, que dominaram nos primeiros cinco anos da competição. É verdade que, em Kiev, o Real sofreu a bom sofrer na primeira meia hora e, provavelmente, a história do jogo teria sido bem diversa se Sergio Ramos não tivesse cometido uma falta (não assinalada) que nem no judo é permitida, por ser demasiado perigosa. E se a trágica lesão de Salah teve o condão de transtornar completamente o Liverpool (sem a bússola do egípcio que se gosta de se vestir de Messi, apenas Mané soube encontrar o norte), os pés de Bale e as misérias e as mãos de manteiga de Karius (um guarda-redes há muito propenso ao acidente) fizeram o resto, como se a genialidade e o fado bom estivessem todo de um lado e a torpeza e a desdita do outro.
Averdade é que, nos últimos 11 anos, o RealMadridganhouquatro Champions,
o dobro dos campeonatos espanhóis conquistados, o que tem permitido ao Barcelona encurtar substancialmente a desvantagem internamente (já soma 25 títulos, contra 33 do Real). A Liga dos Campeões tem-se tornado, cada vez mais, o território predileto dos madridistas, como se exercessem um direito natural. De facto, depois de ter falhado estrondosamente a nível interno, perdendo o campeonato e a Taça do Rei logo em janeiro, o Real voltou a ficar mais forte quando ativou o modus Champions e lá somou a terceira ‘orelhona’ consecutiva, a quarta nos últimos cinco anos. Acaba assim em beleza uma época em que teve provavelmente os maiores momentos de crise de jogo e de resultados sob o comando de Zidane, também evidentes na Champions, designadamente quando terminou a fase de grupos atrás do Tottenham (com quem empatou no Bernabéu e claudicou em Wembley) ou quando teve de beneficiar das ajudas arbitrais para impedir a Juventus de conseguir uma remontada espetacular em Madrid. O Real Madrid é uma equipa com uma qualidade individual imbatível, mas, do ponto de vista coletivo, consegue concentrar todas as suas versões durante os 90 minutos de um jogo. Conse- gue jogar bem, mal e regular, passando num estalar de dedos de um fase em que é competitivo e encantador para outra em que é permissivo e vulnerável. Tem uma capacidade inaudita para mudar de pele e para dar sinais descontínuos, bem visíveis na angustiante eliminatória com o Bayern Munique – e essa descontinuidade notase na forma como venceu fora a Juventus e o Bayern e empatou na casa do Barcelona e do Atlético Madrid e, por outro lado, não conseguiu ganhar a nenhum dos seis primeiros da liga espanhola no Bernabéu, onde também não venceu a Juve e o Bayern.
O Real era favorito em Kiev,
mas menos do que na final de há um ano, quando terminou com sucesso uma época lendária. Do outro lado estava o futebol selvagem e cheio de adrenalina de um Liverpool que num dia bom pode ganhar (ou até golear qualquer um). Mas que ainda não é uma equipa suficientemente fiável e confiável, como voltou a ficar evidente no sábado. O Real também não é, mas continua a saber tirar partido de um treinador que sabe dar carinho a craques mimados e que foge dos holofotes e reparte os méritos – mal o jogo acabou em Kiev, e enquanto os suplentes corriam já para o relvado, o francês virou-se e caminhou para o banco para ir abraçar os seus ajudantes. Nunca veste o traje de craque – ele que foi um dos maiores de sempre.
NUNCA VESTE O TRAJE DE CRAQUE – ELE QUE FOI UM DOS MAIORES DE SEMPRE