Record (Portugal)

O homem que prefere ser feliz

NANI VIU-SE NUMA ENCRUZILHA­DA E OPTOU COM A CORAGEM DE QUEM ASSUME UM DESÍGNIO E LHE INFUNDE A TENSÃO DA AVENTURA. HÁ SEMPRE UM MOMENTO EM QUE, POR MAIS DINHEIRO NA CONTA BANCÁRIA, É IMPOSSÍVEL VIVER COM FALTA DE ILUSÕES

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futebol é um fenómeno estranho que, sendo simples e tantas vezes linear, pode evoluir para tremenda complexida­de de sentimento­s e emoções. Diz-se que o amor à camisola, por exemplo, é um conceito ultrapassa­do; uma referência de tempos que já lá vão, nos quais o homem estabeleci­a compromiss­o eterno entre a atividade e o local onde nascera e era feliz; quando a orgia de sensações de todos os domingos se parecia com as peladinhas de rua do fim do dia, das quais nos sentíamos protagonis­tas por toda a semana. O cresciment­o do negócio enquadrou esse jeito de viver; considerou-o uma ingenuidad­e do passado e matou, aos poucos, a motivação de quem se entregava ao jogo não para ficar rico mas para se tornar vitorioso num Mundo de derrotados sociais. Na visão pragmática do profission­al mercantili­sta de hoje, que tem de pensar nele, na família, no empresário, no advogado e restantes elementos da engrenagem, é raro o futebolist­a que precise mais de mimo do que propriamen­te de ouro.

Mas ainda há casos como o de Na

ni que, aos 31 anos e com uma longa e brilhante carreira a suportálo, agiu como as estrelas de antigament­e: decidiu que estava mais interessad­o em ser feliz do que em ficar (ainda mais) rico. Viu-se numa encruzilha­da e optou com a coragem de quem assume um desígnio e lhe infunde a tensão da aventura. O Sporting é hoje um clube abalado por ventos renovadore­s. Nani é só a prova de que há sempre um momento em que, por mais dinheiro que entre na conta bancária, é impossível viver com falta de ilusões.

O regresso a Alvalade surge de

pois do pior ano da carreira, não pelos alvores da velhice mas porque os deuses se esqueceram de protegê-lo das debilidade­s momentânea­s do corpo e da estupidez alheia. Esse vendaval de fatalidade resultou na fatura extrema da ausência do Mundial, dois anos depois de ter sido fundamenta­l na conquista do Europeu. A volta a casa, enquadrada por um período negro em Valência e, principalm­ente na Lazio, não correspond­e, assim, a qualquer armadilha inesperada da nostalgia. Tornou-se o destino mais óbvio para quem precisa de afeto e de sentir-se desejado para se expressar na plenitude. Nani foi o príncipe de Ronaldo mas alimentou expectativ­as que não cumpriu. Não pretende agora render tributo aos deuses insondávei­s do acaso e da memória. Na primeira amostra diante de adeptos que o adoram, frente ao Marselha, nem foi bafejado pela inspiração mas sentiu-se impulsiona­do pelo motor de ambição, orgulho, sedução, entusiasmo e paixão. Sabe que não vem para beneficiar dos louros conquistad­os noutras paragens; que o tempo não está para acomodamen­tos e que o seu papel na história será o de chave mestra do talento escondido; de inspirador da arte e do engenho, que dê coerência a um empreendim­ento que não pode funcionar como navegação sem bússola e contra a corrente.

O Sporting encerra responsabi­lidade que a braçadeira na apresen

tação acentua. O sonho de glória passa pela sua qualidade – e ele sabe-o. Mesmo não sendo conhecido por cumprir todas as promessas que gerou, as implícitas e as explícitas, há dois anos, no Stade de France, é inesquecív­el a imagem de CR7 sentado no relvado, desesperad­o, com as lágrimas nos olhos pela despedida prematura da final do Euro’2016. Nani agarrou-se emocionado ao capitão e segredou-lhe a frase mais bela: “Cris, vamos ganhar por ti.” Pode hoje não repetir promessas e fazer o que definiu o longo percurso ao mais alto nível do futebol europeu, isto é, manter o perfil silencioso; mas basta olhar para ele, Bruno Fernandes e Bas Dost, mais Battaglia e Acuña, Coates e Mathieu, e quem está ainda na mira, para entendermo­s que, por trás do aparente atraso para os rivais e da confusão institucio­nal, está lançada a ameaça de um fortíssimo candidato ao título.

ALVALADE TORNOU-SE O DESTINO MAIS ÓBVIO PARA QUEM PRECISA DE AFETO E DE SENTIR-SE DESEJADO

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 ??  ?? Aconquista do Euro’2016 foi o último momento de felicidade de Nani. Em dois anos, não teve sorte no Valencia e na Lazio
Aconquista do Euro’2016 foi o último momento de felicidade de Nani. Em dois anos, não teve sorte no Valencia e na Lazio
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Em Espanha, ainda teve momentos de alguma exaltação. Mas a falta de regularida­de não lhe permitiu mostrar todo o talento
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Na Lazio, em 2017/18, assinou uma época para esquecer. Pelas lesões, mas também pela incompreen­são de presidente e técnico

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