Record (Portugal)

O ‘Ronaldo bom’ e o ‘Ronaldo mau’

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ESTE CASO COM CRISTIANO RONALDO ENVOLVE OS PRINCIPAIS DRAMAS E AS TRAMAS DA NOSSA SOCIEDADE: AS DICOTOMIAS, OS PRECONCEIT­OS, AS DESIGUALDA­DES, OS PODERES E OS BLOQUEIOS À VERDADE

Muito se tem dito e escrito sobre o caso de alegada violação sexual a envolver Cristiano Ronaldo e Kathryn Mayorga, e é quase inacreditá­vel a existência de tantas certezas sobre um assunto tão sensível e delicado.

Neste passo, são tão lamentávei­s acondenaçã­o ouaabsolvi­ção públicas de C. Ronaldo como a con- denação ou a absolvição de K. Mayorga, porque nada é absolutame­nte seguro — e parece difícil que se consiga sair deste plano das teses contraditó­rias e antagónica­s sem a realização de um novo acordo. E um novo acordo deixa, outra vez, as duas partes num domínio de grande fragilidad­e.

Cristiano Ronaldo tempouco a ganhar e muito aperder.

Kathryn Mayorga tem muito a ganhar e pouco a perder, para além daquilo que eventualme­nte já perdeu (no plano da auto-estima e da sua integridad­e enquanto mulher).

As atenções viram-separa C ristianoRo­naldo,

por ser uma figura pública à escala universal e por ser um produto que vende. E um produto que vende suscita dúvidas e cuidados, sentimento­s de protecção e de desprotecç­ão, tornando muito difícil —enquanto não for possível reunir todas as provas, se é que isso vai acontecer —a resposta à pergunta essencial: houve ou não um crime de violação sexual?

Este é umjogo de espelhos que reflecte tudo o que de

mau o ser humano e as sociedades modernas conseguem projectar.

Os juízos sumários e as condenaçõe­s que jáse fizeram,

as teses e as contra-teses, as estratégia­s dos advogados, a informação e a contrainfo­rmação, a alma reflectida pelos utilizador­es das redes sociais são a projecção real do Mundo em que vivemos.

Jáse colocou Cristiano Ronaldo no plano da‘estrela’ que pode tudo,

pelo seu estatuto, por aquilo que conseguiu alcançar como profission­al de excelência e, fundamenta­lmente, pelo seu poder económico. Já se colocou, em contrapont­o, Cristiano Ronaldo no plano da vítima, apanhado por um esquema de tentativa de aproveitam­ento desse mediatismo e desse poder económico.

Jáse colocouK. Mayorga,

aspirante a modelo na altura em que ocorreram os factos, no papel de extorsioni­sta e prostituta; já se co- locou Mayorga como símbolo e heroína, combatente de uma sociedade machista que não tem respeito pelo direito das mulheres em escolher o seu caminho e em lutar pela igualdade de oportunida­des, contra os abusos e as discrimina­ções.

Hárazões pequenas de profissão de fé que levam as pessoas a nem sequer quererem saber se houve crime e a não olhar para os factos para escolherem, liminarmen­te, um dos protagonis­tas. Ou por convicção, ou por fascínio ou, em muitos casos, por interesse, seja ele gigantesco, grande, pequeno ou quase irrelevant­e.

Paraumaleg­ado crime destanatur­eza e com os contornos que têm vindo a público, não é certo e até pode ser pouco provável que alguma vez se chegue à verdade dos factos. A palavra de um contra a palavra de outro, no que diz respeito ao (não) consentime­nto, pode deixar tudo num limbo jurídico de difícil penetração.

No âmbito do que efectivame­nte estáemcaus­a, o (não) consentime­nto é importante, porque esse facto atira-nos para dois momen- tos da nossa existência que deveriam ser mais valorizado­s por todos: o respeito pela liberdade individual e, já agora, da privacidad­e que todos estamos abusivamen­te a deixar de ter —a privacidad­e que não deve ser confundida com crimes cometidos na clandestin­idade.

Seocrime sexualexis­tiu, não há nada que o possa ou deva desculpabi­lizar: nem a fama, nem o poder económico, nem o estatuto de ‘estrela’, nem mesmo o jogo de sedução. Se existiu um ‘não’, ‘não’ é ‘não’ - sem (falsos) moralismos. Neste contexto, ser Cristiano, João ou Manuel, no plano criminal, deve ser exactament­e igual, embora estejamos todos cansados de saber que quem tem maior poder económico tem mais possibilid­ades de se defender perante a Justiça.

Já ouvimos várias versões, dos dois lados, a justificar a existência de um acordo. Um acordo para ‘comprar o silêncio’ nunca deixa nenhuma das partes em boa posição.

Neste momento, numa visão analítica desapaixon­ada, o que se pode dizer é que o Cristiano Ronaldo fora do campo e do ambiente profission­al é muito diferente do Cristiano Ronaldo desequipad­o e fora dessa esfera profission­al.

O Cristiano Ronaldo, jogador de futebol, é um atleta extraordin­ário, com uma carreira fantástica, muito difícil de igualar. Neste plano, só pode ser um orgulho para Portugal e para os portuguese­s, pelo nível de excelência que atingiu e da forma como a conseguiu – como inegável mérito e muito trabalho.

OCrist ia noRonaldof oradas quatro linha seda cabina tem toda uma história de casos, casinhos e casões –nos antípodas do que acontece por exemplo com Messi – que envolve mulheres e barrigas de aluguer, e sobre isso ele está, em muitas situações, no plano da sua liberdade individual, fazendo opções que lhe podem merecer crítica social mas que cabem no domínio das suas legítimas escolhas.

O crime, quando é crime, é outra estória. Quando há crime, ele deve ser punido, estando em causa um Bob ou Manel, uma Kathryn ou uma Maria, um Jeff ou um Cristiano.

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