Record (Portugal)

“O estranho mundo de Octávio Machado”

- BRUNO DE CARVALHO, COM LUÍS AGUILAR

“SEM FILTRO – AS HISTÓRIAS DOS BASTIDORES DA MINHA PRESIDÊNCI­A”

Ponto prévio: Octávio Machado entrou no Sporting por intermédio de Jorge Jesus. Somente por ele. Somente por isso. E, aqui, uma vez mais, entramos nas tais conversas da estrutura que o Jorge gostava de ter. Disse-nos que o Octávio era alguém com muita experiênci­a e conhecimen­to do que era o futebol português, e que o Sporting não tinha ninguém assim, dando sempre o exemplo de como era o Benfica, onde existiam várias pessoas com esse perfil. Defendeu que o Octávio era o homem certo para estar a trabalhar com ele e para o ajudar a pôr o Sporting mais perto dos rivais. Porque o Octávio era fundamenta­l, porque o Octávio era imprescind­ível, porque os outros também tinham profission­ais assim e porque, com ele, seria muito melhor. Não vimos qualquer problema em contratar alguém que era tão importante para o nosso novo treinador e fizemos-lhe essa vontade. Não demorei muito tempo a perceber, contudo, que o novo diretor-geral do futebol era um elemento altamente perturbado­r. Todos os dias, por volta das 8h00, punha logo o Jorge fora de si porque começava a ler-lhe tudo o que vinha na imprensa sobre pessoas que poderiam ter emitido uma opinião menos simpática sobre o nosso treinador. «Já viste o que este diz de ti? E este aqui?» Esta forma de estar mexia muito com o Jorge. Estamos a falar de um homem bastante influenciá­vel e sempre muito preocupado com o que os outros dizem sobre ele. Se houver alguém no meio do deserto que diga algo desfavoráv­el do Jorge, ele vai logo tentar uma operação de charme junto dessa pessoa para que ela mude de opinião. Isto aconteceu várias vezes com alguns comentador­es e jornalista­s. Para o Jorge, a simples ideia de haver uma pessoa que não gosta dele é absolutame­nte insuportáv­el.

Mas o Octávio, que o conhece há muitos anos, insistia em oferecer-lhe esse relato diário. E, como é um indivíduo muito culto, fazia uma análise profunda de cada uma das frases que, no seu entender, eram dirigidas contra o Jorge. Não sou homem de fingir. Julgo que o Octávio percebeu desde cedo que, para mim, estaria a mais. Sem querer ser injusto, a verdade é que, nos dois anos em que ele esteve no clube, nunca vi nada do seu trabalho que pudesse constituir uma mais-valia para o Sporting. Disse isto ao Jorge várias vezes. Chegámos a fazer uma viagem de avião inteira em que o assunto era o Octávio. Ele até concordava comigo, mas terminava sempre a dizer o mesmo: «É um elemento fundamenta­l. É um ele- mento imprescind­ível.»

E por isso o Octávio lá se ia aguentando. Mas muito contra a minha vontade. Cheguei ao cúmulo de entrar na Academia ou no autocarro do Sporting e ver os televisore­s sintonizad­os na CMTV, canal onde o Octávio trabalhou antes de sair do clube e para onde voltou logo a seguir. Tive de dar uma ordem a proibir a emissão de qualquer outra estação a não ser a Sporting TV. Sempre o achei um elemento que só servia para criar agitação interna.

Mais: o Octávio trazia dentro dele algumas ideias estranhas. A partir da segunda época, tanto ele como Jorge insistiam em contar - me como funcionava o futebol português. Diziam que certos clubes conseguiam ter influência junto de outros para vencerem quando jogassem contra eles. E o mesmo, segundo diziam, também era feito quando esses clubes queriam que os de menor dimensão ganhassem a um rival. Ambas as situações, como se sabe, são totalmente ilegais. Os chamados prémios para ganhar ou para perder. Ao mesmo tempo, diziam que a estrutura do Sporting tinha muito a aprender com os rivais, nomeadamen­te com o Benfica. Davam o exemplo de que os encarnados compravam quantidade­s consideráv­eis de bilhetes dos estádios adversário­s, quando iam lá jogar, para terem o apoio do seu público, naturalmen­te, mas acabando, em consequênc­ia, por ter influência junto desses outros emblemas. Também focaram a importânci­a de os clubes se saberem relacionar bem como os árbitros. Aliás, esse foi um dos argumentos utilizados pelo Jorge para contratarm­os o Octávio. Porque este conhecia muitos senhores do apito, encontrava -se com eles regularmen­te e estes respeitava­m -no. Porque, com ele, os árbitros não iriam continuar a prejudicar o Sporting. Seriam justos. O próprio Octávio, mais tarde, confirmou essa suposta excelente ligação a vários árbitros.

Cheguei ao ponto de ter os dois a massacrare­m-me com estes assuntos. E sempre a sublinhare­m que o mais importante era conseguir influência sobre os outros clubes. E essa conseguia-se através destas práticas, exemplific­ando com a tal compra de bilhetes que eles imputavam ao Benfica. «É assim que se faz», contavam eles. E lá voltavam ao mesmo: «Mas a nossa estrutura do futebol não sabe nada. É péssima.» A certa altura tive de explicarlh­es: «O Sporting é um clube diferente. Jamais, comigo aqui, iria entrar nesse tipo de esquemas. Nem comigo, nem com os meus colegas.»

Ainda assim, eles insistiam. É verdade que nunca me disseram diretament­e que o Sporting deveria entrar por vias ilegais. Mas lembravam sempre que era assim que outros faziam. Era uma conversa que me desagradav­a. E muito. Cheguei a dizer isso ao Jorge. E disse-lhe mais: «Se alguma vez o Sporting entrasse nesses esquemas, e nunca seria comigo, a verdade é que não precisava de si para nada.» Ou seja: quis dar -lhe a entender que um clube com um dos treinadore­s mais bem pagos do mundo teria de ser capaz de vencer sem precisar de entrar em jogos de bastidores. Poderia ser isto uma sondagem dos dois para ver a minha abertura? Eu às vezes faço-me de parvo. Não sei o que era. Nunca quis tirar conclusões precipitad­as. Nem quero. Mas posso dizer que o Octávio e o Jorge foram as primeiras pessoas com muitos anos de futebol de quem ouvi estas conversas sobre jogos para ganhar e para perder. Também é verdade que nunca foram mais além. Nunca passaram do ponto de apenas me contar estas coisas. Podia ser só uma lição. Aliás, ia ao encontro do que o Jorge gostava de me dizer muitas vezes: «Eu sei muito do que se passa no futebol.» Talvez um dia fosse bom ele contar tudo o que diz que sabe porque poderia ajudar a resolver muitos problemas do futebol português. E o Octávio podia fazer-lhe companhia. Os dois, pelos vistos, sabem mesmo muito. Nessa segunda época, porém, o Octávio esteve bastante tempo ausente devido a problemas de saúde. E convém explicar que a sua baixa médica foi sendo prolongada devido a uma decisão conjunta de Frederico Varandas, então chefe do departamen­to clínico, e do próprio Jorge Jesus. Porquê? Só os dois poderão explicar, mas a verdade é que a baixa foi sendo estendida, e, consequent­emente, o Octávio falhou muitos jogos.

Saiu no final dessa temporada depois de me entregar asuacartad­e demissão. Recebi -a com agrado, não tenho qualquer problema em dizê-lo. O Jorge veio falar comigo ainda antes desse momento, voltando a afirmar que o Octávio era um elemento importantí­ssimo, que eu não lhe dava valor, mas que ele deveria continuar. Tenho acerteza de que, nessa altura, o Octávio pensou que poderia entregar-me a cartaàvont­ade e que eunão aceitariad­evido àpressão feitapelo Jorge. E que, dessaforma, ele ficarialeg­itimado para continuar na sua função. Enganou-se. Aceiteiaca­rtano mesmo segundo.” *

“DIZIAM QUE CERTOS CLUBES CONSEGUIAM TER INFLUÊNCIA JUNTO DE OUTROS PARA VENCEREM CONTRA ELES”

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