Record (Portugal)

Internacio­nal em duplicado

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Para alguém que começou a jogar futebol no Bairro da Bela Vista, o que sentiu ao vestir a camisola nacional? SM – Foi um orgulho enorme representa­r o nosso país. Estive três anos nos sub-21, escalão onde comecei a ir com 19 anos. Fiz vários jogos nessa altura, inclusivam­ente no Torneio de Toulon, em 1998.

Mais tarde surgiu a possibilid­ade de representa­r a seleção A de Cabo Verde. Explique lá isso..

SM - Depois dos sub-21 não me chamavam para jogar por Portugal e esse período coincidiu com o surgimento de uma lei de dupla nacionalid­ade que permitia, não tendo jogado pela Seleção A, fazê-lo por Cabo Verde. Fui convencido por um ex-colega, o Zé Rui. Em boa hora o fiz.

SM – Fiquei chateado porque achava que tinha qualidade para ter ficado. Pensei que, a partir daí, só ia jogar no bairro com os meus amigos. Depois de um ano n’ Os Pelezinhos, o Vitória queria que fosse para lá, mas recusei fazê-lo, porque era pequenino, mas era orgulhoso. Só no ano seguinte, depois de ir a um torneio interassoc­iações em Lisboa, fiz grandes amizades com colegas que jogavam noutros clubes da cidade. Optámos todos por ingressar no Vitória no final dessa competição.

Sentia que vivia num bairro problemáti­co?

SM – Quando se agarra em grupos de pessoas necessitad­as, de diferentes etnias e culturas, e se colocam todas juntas a viver no mesmo bairro é normal que surjam confli- tos. Havia pequenas guerras que se geravam e que eram normais. Também quando saíamos do bairro sentíamos que as pessoas nos olhavam muitas vezes de lado por sermos da Bela Vista. Parecia que tínhamos alguma doença. Felizmente, tive uma infância bastante feliz aqui. Houve colegas meus que entraram por outros caminhos. Foram opções que na altura, se calhar, eram uma saída para eles.

Que “caminhos” foram esses? SM – Tive amigos que estiveram presos e outros que, infelizmen­te, já não estão entre nós. Uns morreram e outros foram mortos. Felizmente, também tenho amigos que se formaram. Uns são doutores, outros são polícias. Há um pouco de tudo. A Bela Vista continua a ser um bairro referencia­do e falado pelos maus motivos, mas vive cá muita gente boa.

Houve alguma perda que o tivesse marcado especialme­nte? SM – Sim, a do meu amigo Toni. Tínhamos estado a conviver um dia de manhã com outros amigos e à hora de almoço decidimos ir à praia. O Toni disse que não podia porque tinha coisas para fazer. Quando voltámos da praia vimos no bairro um aparato grande de gente e muita polícia e soubemos que o nosso amigo tinha morrido com um tiro de ‘shotgun’ de um polícia. Foi um tiro de borracha que foi disparado a um palmo de distância. Esse episódio marcou-me muito [Manuel Pereira, conhecido na Bela Vista por Toni, morreu com 24 anos a 20 de junho de 2002].

Sentiu-se revoltado? SM – Sim. Não é fácil quando acontece uma coisa destas a uma pessoa de quem gostas e com quem convives diariament­e. De um momento para o outro deixas de poder estar com esse amigo, ainda mais por ter sido por um motivo aparenteme­nte estúpido. Houve um desentendi­mento, o Toni disse uma coisa, o polícia outra e aconteceu aquela tragédia. Já não há nada a fazer.

Pelas pessoas que já vieram ter consigo [n.d.r.: entrevista foi várias vezes interrompi­da por vizinhos e amigos, alguns deles conversand­o com o treinador em crioulo], percebe-se que ainda tem amigos a viver no bairro. Com que frequência vem aqui?

SM – Muitos dos meus amigos vivem noutros sítios e outros estão

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