‘Portugal indecente’ ou a visão de Rui Pinto
O PAÍS NÃO COROU COM AS INDECÊNCIAS DENUNCIADAS, TALVEZ PORQUE ESTEJA DEMASIADO HABITUADO A CONVIVER COM ELAS
Temos inspetores da PJ, magistrados, juízes que infelizmente levam a paixão clubística muito a sério, recebem convites VIP para assistirem a jogos de futebol. Basta isso para se perceber que as coisas em Portugal não vão mudar. Portugal está podre. Entristece-me. Vejo outros países motivados em lutar contra a corrupção no futebol e Portugal não está.”
“(…) Quando vemos inspetores da PJ a usarem emails pessoais para falarem com elementos da Doyen e tratarem-se quase como amigos, isso é gravíssimo. O Ministério Público investiga? Não quer saber disso. Provas? Tenho, estão em França. Entreguei provas disso às autoridades francesas (…) . Isto é escandaloso.”
“O Football Leaks revelou pormenores bem interessantes do FC Porto. Por exemplo, a colaboração com a Doyen, comportamentos que considero estranhos em relação à participação do filho de Pinto da Costa, Alexandre, também outro fundo registado na Áustria, em Viena, chamado Danubio... Existem algumas coisas que me fazem acreditar que possa talvez haver desvio de fundos no FC Porto, o que me entristece (…). E entristeceme algumas coisas que soube sobre o F. C. Porto. Parte delas já são públicas. Se mais vão ser reveladas? Há essa possibilidade. (...) Acho de muito mau gosto algumas acusações em Portugal de que sou movido pelos interesses do FC Porto. Sou portista, mas não tenho nenhuma agenda escondida” As três linhas de pensamento de Rui Pinto acima descritas não devem ser desprezadas. Vamos chamar-lhes linhas de pensamento 1, 2 e 3.
Quantoa1): não é de agora, é praticamente de sempre a percepção de que a ‘paixão clubística’ domina quem não deveria dominar, porque uma coisa são os adeptos, despidos da sua condição de decisores, em matérias relacionadas com a lei, as regras e os regulamentos; outra coisa são as personalidades que, de acordo com as suas valências académicas e (para)profissionais, são chamados a colocar os seus afectos de parte e a agir imparcialmente de acordo com a sua condição de decisores. Essa condição obriga a um dever de isenção que deveria ser fomentado, protegido e premiado –e nada disso acontece em Portugal. Na verdade, alguma coisa está errada quando alguns desses decisores aceitam (ou aceitavam, até há bem pouco tempo) lugares em tribunas VIP, cujos convites –ao contrário do que se quer fazer crer – não são actos de pura cortesia; são formas de gerir, potenciar e aproveitar diversos níveis de influência. Na verdade, não se sente que haja uma profunda vontade de combater a corrupção no futebol (e no País, acrescente-se), e isso pode ter a ver, ou não, com o grau de satisfação de muitos ‘agentes’ em relação ao ‘sistema’ vigente.
Quantoa2): se há provas do que foi dito por Rui Pinto, o Ministério Público não as pode ignorar. Se o sistema está podre, se as instituições que têm uma função de regulação decisiva não cumprem o seu papel, então é preciso criar as condições para que, dentro delas, se faça a devida regeneração. Alguém está interessado nessa tarefa?
Quantoa3:) quando Rui Pinto diz que talvez possa haver desvio de fundos no FC Porto e afirma a sua tristeza por “algumas coisas que soube sobre o FCP”, ainda faz senti- do a campanha movida pela ‘máquina trituradora’ que o colou à posição de ponta-de-lança do FC Porto em relação ao Benfica? Rui Pinto passa a ser, doravante, menos ‘herói’ (para os azuis e brancos) e menos criminoso (para os encarnados)? Não será válida a pergunta segundo a qual talvez estejam em causa os mecanismos de regulação que falham porque não haverá vontade político-clubística para os fazer funcionar? Será que Rui Pinto é um alvo a abater, porque sabe demasiado e denuncia a ineficácia do sistema, nas suas mais diversas dimensões e nos poderes que a eles estão associadas?
Nãoparecenormal, com efeito, que só haja no País uma voz dissonante (a eurodeputada Ana Gomes) sobre o papel de Rui Pinto na denúncia da marginalidade associada ao futebol. Não parece normal que sobre o revelado no ‘Football Leaks’ as instituições portuguesas tenham um entendimento de parcimónia e inação, enquanto outros estados europeus revelam uma atitude de interesse, de colaboração e até de investigação activa sobre as denúncias que caíram no espaço público. Não se trata de um apelo à desvalorização de crimes que Rui Pinto possa eventualmente ter cometido (como a eventual tentativa de extorsão), mas o prejuízo que a omissão, a indiferença e até um certo conluio estejam a causar ao ‘bem comum’ (no tema da fiscalidade, por exemplo) e nas entorses à Verdade Desportiva. É tudo tão nebuloso no futebol (e não apenas em Portugal) que talvez fosse aconselhável que o nosso PR, o nosso Governo, a nossa AR, o aparelho judicial e judiciário não fossem tão lestos a condenar Rui Pinto.
O olhar indecente de Rui Pinto sobre Portugal não provocou nenhuma indignação. Talvez haja um estranho conformismo em relação às indecências e à forma leviana como os nossos ‘barões assinalados’ olham para elas. Dá que pensar.