A glória tem preço
COM O AJAX APRENDEMOS ALGO DE SIMPLES: O SEGREDO DO PEIXE MIÚDO FACE AOS TUBARÕES RESIDE NA FORMAÇÃO. É ALI QUE ESTÁ O MINÉRIO, AS PEPITAS DE OURO
da nossa cultura ocidental, do Antigo Testamento, que adoramos histórias em que David vence Golias. No confronto dos grandes contra pequenos, os primeiros ganham na maior parte das vezes, é a lei da vida. No futebol, na generalidade, os milhões superiorizam-se aos cêntimos. Porém, há sempre contos de fadas. O Mundo delirou com a cavalgada de Vardy e Mahrez, liderados por Claudio Ranieri, na conquista da liga inglesa do Leicester, mas todos já sabiam que era nuvem passageira, proeza épica, que acontece uma vez em cem. Este ano, na Champions League, o Tottenham, que não gastou um cêntimo em reforços esta temporada, bateu o Manchester City, um poço de petróleo sem fundo de dinheiro asiático ao dispor de Guardiola que tem um modelo de jogo atraente e que torra em aquisições sem controlo ao sabor dos seus caprichos. No entanto, a mais bela narrativa estava em Turim.
Claro que como português adorava que Cristiano Ronaldo levasse aos ombros
a esquadra dos Agnelli e atingisse a décima meia-final consecutiva, mas quem não gosta de ver o talento à solta à imagem de Michels, Cruijffe Van Gaal que o Ajax proporciona? A equipa de Erik Ten Hag é o David no meio de Golias com um orçamento menor do que os clubes portugueses, alicerçando a sua pujança técnica num modelo intrinsecamente cultural, cultivado desde as camadas jovens. Com eles aprendemos algo simples: o segredo do peixe miúdo face aos tubarões reside na formação. É ali que está o minério, as pepitas de ouro que dão qualidade competitiva e, posteriormente, valorizando-as, o rendimento necessário ao funcionamento dos clubes. Vejamos: De Jong sai já por 75 M€ (Barcelona) e vamos ver quanto vai alcançar o leilão por De Ligt. Vejo com bons olhos o esforço de Vieira em aumentar a capacidade do Seixal e elogio Varandas por ,em vez de esbanjar num ponta-de-lança, apostar 12 M€ nos melhoramentos de Alcochete. Já não consigo compreender o FC Porto, que continua sem projectar os diversos talentos que também andam pelo Olival e que têm saído prematuramente para outras paragens como André Silva, Dalot e o excepcional Rúben Neves. E mesmo que se justifiquem com os 78 M€ conquistados na actual saga europeia, é claro que nem todos os anos conseguirão atingir este patamar e o futuro é já amanhã.
Relembro algo que tem passado despercebido.
Das 16 equipas presentes nos quartos-definal de Champions e Liga Europa apenas FC Porto, Barcelona, Ajax, Benfica e Eintracht não são maioritariamente detidos por capitais privados. Significa isto que cada emblema é uma empresa, o tempo da paixão bela e simples dos adeptos pelo desporto que amamos está a ser canibalizado por empresários seduzidos pelos holofotes da fama e pelo potencial de uma indústria que continua a crescer a dois dígitos. A glória tem um preço: muitos milhões, mas ainda bem que há contos de encantar como o do Ajax.
Começa amanhã no Crucible o Campeonato do Mundo de
uma das minhas modalidades preferidas: o snooker. Jogadores geniais, tacadas fabulosas, numa coreografia perfeita no meio daquele som do silêncio do pano verde. Ali há prémios chorudos, porém, a glória só depende do talento individual.
QUEM NÃO GOSTA DE VER O TALENTO À SOLTA À IMAGEM DE MICHELS, CRUIJFF E VAN GAAL?