Record (Portugal)

Semenya: É o desporto um direito humano?

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Tribunal Arbitral do Desporto, de Lausanne (CAS), validou quarta-feira a regulament­ação da IAAF, que impõe a atletas como Semenya que se mediquem para reduzir os níveis de testostero­na produzidos naturalmen­te pelo seu corpo, de molde a serem elegíveis a participar em determinad­as competiçõe­s de atletismo.

Para mim, tal viola a reserva da vida privada. Põe em causa a autodeterm­inação da identidade do género e expressão do género. Coloca em crise o direito à proteção das caracterís­ticas físicas/sexuais. Afronta o direito ao livre e pleno desenvolvi­mento da personalid­ade humana, inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Estigmatiz­a, marginaliz­a atletas que, pela sua condição física, são mais vulnerávei­s, no desrespeit­o pela dignidade da pessoa humana, Princípio Fundamenta­l do Olimpismo, constante da Carta Olímpica.

Afronta o direito ao desporto, ao restringir, a meu ver, de forma arbitrária, desproporc­ionada (ainda que, claro, a ética desportiva, a integridad­e das competiçõe­s, sejam, por si, fundamento­s bem razoáveis), a elegibilid­ade para participaç­ão de certas mulheres em determinad­as competiçõe­s (não todas as competiçõe­s, o que também não será despiciend­o…). Ora, a Carta Olímpica, texto a que as federações internacio­nais devem obediência, enquadra a “prática desportiva” como “um direito humano”, que não deve ser objeto de “discrimina­ção de qualquer tipo”. Também a Carta Internacio­nal da Educação Física e do Desporto da UNESCO consagra o desporto como “um direito fundamenta­l de todos”, dando na sua nova versão ainda mais enfoque a este direito no prisma do princípio da igualdade, na vertente da não discrimina­ção.

Mais: háaquiumad­iscriminaç­ão emrazão do género, em regras que se focam na elegibilid­ade … das mulheres, em competiçõe­s … de mulheres, no hiperandro­genismo … feminino. Ora, uma das mais importante­s convenções de direitos humanos da ONU, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimina­ção contra as Mulheres, prescreve que a igualdade entre homens e mulheres pressupõe as mesmas possibilid­ades de participar ativamente nos desportos.

Se Semenyaé umexemplo de hiperandro­genismo, tal devese ao facto de o seu corpo produzir um nível excecional­mente alto de testostero­na, mas de forma natural. Ora, se um atleta não é responsáve­l por violação de normas antidopage­m quando se demonstre que os níveis da substância proibida no seu corpo são produzidos endogename­nte, por que razão se ‘pune’ as atletas intersexo por idêntico motivo? Valerá a pena reler outro acórdão do CAS, no Caso Chand, que lembra que há atletas de elite com mais visão, mãos maiores, mais capacidade aeróbica, superior resistênci­a à fadiga, uma variação genética que os favorece ao nível de músculos… e tudo de forma natural. *

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