Repor não é acrescentar
FALTA HOJE AO FC PORTO UM CRAQUE QUE SE RECUSE A MEMORIZAR A TABELA PERIÓDICA E SEJA CAPAZ DE ESCREVER SOZINHO AS EPOPEIAS. UM INVENTOR DE COISAS RARAS, COMO BRAHIMI É INCONCEBÍVEL QUE O BOLETIM MÉDICO NÃO TENHA DIVULGADO O PROBLEMA DE DANILO
A
entrada em falso do FC Porto na Liga portuguesa em contraponto com a enxurrada de golos que o Benfica continua a oferecer pode clarear-se de várias formas, e uma das mais racionáveis e legítimas é discorrer sobre as diferenças entre repor e acrescentar. Dito de outra forma: enquanto os portistas tentaram apenas substituir o (muito) que haviam perdido, o campeão nacional adicionou mais soluções de qualidade àquele que já era o melhor plantel do futebol português. E até porque o Sporting continua a debater-se com os restos radioativos da ‘kriptonita’ deixada em Alvalade por um ex-presidente que se achava ‘superman’, parece cada vez menos descabida a perspetiva de a presente superioridade do Benfica se transformar numa hegemonia mais duradoura do que benfazeja para o já de si desnivelado futebol português.
E não deixa de ser um paradoxo
que este cenário coincida com o defeso em que o FC Porto fez o maior investimento da sua história em reforços. Sim, porque os mais de 60 milhões que irão representar as oito contratações (incluindo o passe de Loum) ultrapassam o anterior recorde (53,7 milhões) registado em 2014/15, no primeiro ano de Julen Lopetegui. Com a agravante de os atuais reforços parecerem menos lucrativos em eventuais vendas futuras, até pela idade avançada de al
guns deles (Marcano tem 32 anos, Marchesín 31 e Uribe e Zé Luís já vão nos 28) e pelos 12 milhões gastos em metade do passe de Nakajima.
Mas, mais do que questionar o dinheiro desembolsado,
houve quem estranhasse o tempo gasto nalgumas das contratações, mais a mais numa equipa que tinha urgência em encontrar alternativas credíveis a Casillas, Militão, Felipe, Brahimi, Herrera e Óliver. Porque, já se sabe, o FC Porto não se pode arriscar a perder o ‘jackpot’ de 44 milhões que a Champions garante logo à partida. Isto apesar de a anterior Liga dos Campeões lhe ter rendido 78 milhões (mais receitas de bilhética e de TV) e de ter a haver uma parte importante dos 84,5 milhões estabelecidos nas vendas de Militão, Felipe, Óliver e José Sá, o que diz bem do estado das finanças do clube antes de ficar sob a vigilância do fair play da UEFA.
Claro que este contexto está longe
de explicar a derrota do FC Porto na abertura do campeonato, algo que já não acontecia há 18 anos. E também não serve como atenuante o desgaste da viagem a Krasnodar, a pontaria atamancada e a moral quebradiça de Soares, a falta de tempo para integrar alguns reforços no modelo de jogo, principalmente Nakajima e Uribe, a condição física de Marega ou a fadiga muscular que obrigou à ausência de Danilo (aqui importa mesmo abrir um parêntesis, porque é inconcebível que o boletim médico não tenha divulgado atempadamente o problema do capitão, mais a mais sabendo-se das especulações que resultariam da sua ida para a bancada, na sequência do conflito que o médio havia tido há dias com o treinador – e a omissão é ainda mais incompreensível, dado que antes tinha havido a inteligente decisão de os juntar numa conferência de imprensa). São todas elas justificativas menores porque do outro lado estava um Gil Vicente que andou uma data de anos a penar no Campeonato de Portugal.
Ora, se Vítor Oliveira, qual prestidigitador,
recebeu 23 reforços e num ápice foi capaz de apresentar uma equipa organizada, consistente e com ideias, é ainda menos razoável a sucessão de corridas trapalhonas que foram tornando ingovernável o jogo do FC Porto, que se apresentou sem sinais do efeito intimidatório que se notava quando a equipa navegava feliz.
Já se sabe que o futebol vulcânico
que se lhe viu nos seus melhores dias e que faz parte do ideário de Sérgio Conceição depende da velocidade, da musculatura e do espaço. Mas em Barcelos não houve sinal do seu poder energético. Faltou-lhe sempre dentes de serra, o que foi agravado por nenhum dos seus avançados oferecer, nesta altura, detalhes cirúrgicos de um predador. Não foi apenas um problema de jogo. Foi, principalmente, um dilema resultante da falta de voltagem, o que contraria a verdadeira natureza futebolística do seu treinador. E, quando assim é, já se sabe que o FC Porto não defende nem ataca bem.
É verdade que isso também já aconteceu no passado
e que a equipa acabou por se reencontrar, como provavelmente acabará por o fazer esta época. A diferença é que, naquelas alturas, o FC Porto sabia sempre que podia recorrer à capacidade individual de Brahimi, um transgressor que irá sempre contribuir para os cabelos brancos dos seus treinadores, mas dos poucos capazes de inventar coisas raras. Ao FC Porto falta hoje um jogador deste calibre. Dos que dão aos adeptos magia e não apenas cimento. Dos que se recusam a memorizar a tabela periódica, mas que sabem escrever sozinhos as melhores epopeias do futebol.