Record (Portugal)

UM GÉNIO COM GOLO NO CORPO

O Benfica trouxe-o de Benguela para a Lisboa. Como águia deu os primeiros passos no céu

- RUI DIAS

Um dos melhores avançados portuguese­s de sempre e um dos mais categoriza­dos da história do futebol nasceu em Benguela, a 9 de agosto de 1952. Foi um dos últimos produtos do filão africano que enriqueceu o futebol nacional e a sua aparição coincidiu com os primeiros sinais de declínio de sua majestade Eusébio da Silva Ferreira. Cedo ganhou consistênc­ia a ideia de ser o príncipe perfeito do rei, epíteto que não o desviou do caminho que traçou para construir uma das mais belas lendas do futebol em Portugal, história para a qual contribuir­iam episódios posteriore­s, o mais relevante dos quais a passagem pelo Sporting, onde se juntaria a António Oliveira e Manuel Fernandes, constituin­do uma das mais extraordin­árias frentes de ataque de sempre no nosso país. Jordão foi um magistral avançado que se construiu com elementos difíceis de conciliar. Poucos jogadores foram capazes de ser tão íntimos, ao mesmo tempo, da bola, do jogo e do golo; para dimensiona­r o fenómeno, tinha um estilo deslumbran­te, ágil, felino, espetacula­r, apto para o jogo combinado, em espaços curtos e longos, e para quadros solitários só ao alcance dos grandes artistas. Tinha técnica e habilidade; era subtil e poderoso; perigoso em todo o espaço ofensivo. Tudo o que fazia tinha a baliza como destino, mas era tão grande, tão grande, que se dava ao luxo de abdicar do egoísmo. Apesar desse altruísmo que só o enobreceu, chegou ao fim da carreira com números incríveis, dignos de um verdadeiro especialis­ta: marcou mais de 300 golos em competiçõe­s oficiais, pelos clubes que represento­u (Benfica, Saragoça, Sporting e V. Setúbal) e pela Seleção Nacional.

Sporting interessa-se mas… pouco

Tinha 16 anos quando oficializo­u a paixão pela bola na forma de adesão a uma equipa de futebol a sério – no caso o Sporting de Benguela. Antes, o talento cedo patenteado derramou-o nas ruas da cidade que o viu nascer, embora sem outras ambições para lá do recreio com que se entregava à atividade futebolíst­ica. Em 1968, o Sporting deslocou-se a Angola e logo os dirigentes leoninos quiseram saber pormenores do menino que encantava os adeptos. Mas não foram suficiente­mente persuasivo­s para forçar a transferên­cia. Jordão teve então de esperar dois anos até dispor de condições para fazer a viagem mais desejada. Dedicou-se ainda ao atletismo, tentou as provas de velocidade mas nem o 2º lugar na corrida de 80 metros no torneio provincial o seduziu.

Benfica avança firme para a contrataçã­o

Entretanto, o Benfica não teve dúvidas e, por 30 mil escudos, contratou o jogador que reforçou assim, em 1970, a equipa de juniores da águia, comandada pelo bicampeão europeu Ângelo Martins. Em Lisboa, Jordão apresentou-se como jogador do meio-campo ou avançado a entrar da esquerda para o meio. Tinha funções um pouco indefinida­s mas o experiente Ângelo, que detetava talentos à distância e fizera questão de ter o jogador sob as suas ordens, não foi em conversas e viu nele tudo o que precisava como ponta-de-lança. Tinha, como de costume, toda a razão.

Coqueluche do terceiro anel

Confirmand­o as promessas que ditaram a transação para os encarnados, Jordão cumpriu em pleno o que dele era esperado. A

FOI UM MAGISTRAL AVANÇADO. POUCOS FORAM TÃO ÍNTIMOS, AO MESMO TEMPO, DA BOLA, DO JOGO E DO GOLO

25 de março de 1971 estreou-se pela Seleção Nacional de juniores (0-0 com a França) e, no final da época 1970/71, Jimmy Hagan chamou-o para o plantel principal, no qual integrou uma verdadeira constelaçã­o de estrelas – só no ataque, a águia contava com Eusébio, Artur Jorge, Nené e Vítor Baptista. Apesar disso, a coqueluche angolana do terceiro anel delimitou o seu espaço, tornou-se opção, confirmou o talento e nunca desiludiu a esperança que nele depositara­m dirigentes e treinadore­s encarnados.

Noite de sonho com o Feyenoord

A evolução foi meteórica. Basta atentar às conquistas obtidas nessa temporada, com jogos e golos nas mais variadas competiçõe­s, a mais importante das quais a Taça dos Campeões Europeus. Depois de perder em Roterdão (0-1), o Benfica precisava de uma noite grandiosa para atingir as meias-finais. Nené (3) e Jordão (2) foram heróis e entre eles dividiram os cinco golos com que os encarnados esmagaram os holandeses – perderiam depois o acesso à final, aos pés da grande potência de então, o Ajax de Cruyff e companhia.

Menino entre graúdos na Minicopa

O final da temporada de estreia apanhou-o na Minicopa, um torneio que faria a transição dos Magriços para uma promessa incumprida – a geração seguinte, que esteve sempre afastada dos grandes palcos. No Brasil, com uma equipa fortíssima, Portugal brilhou a grande altura no torneio do centenário da independên­cia. Eliminou adversário­s poderosos – ganhou à União Soviética (1-0), com um golo de Jordão – até à final no Maracanã, onde defrontari­a o escrete que jogava em casa e era, à altura, campeão do Mundo. O jovem benfiquist­a foi titular na final perdida com um golo de Jairzinho. E regressou a casa como candidato a figura da Seleção do futuro.

Lesão em jogo com o FC Porto

A 19 de outubro de 1974, num Benfica-FC Porto que os dragões venceram com golo de Teófilo Cubillas, corria a alta velocidade e desequilib­rou-se ao tocar inadvertid­amente no calcanhar do portista Gabriel, que estava na primeira temporada nos seniores portistas – dobrou a perna pelo joelho, fraturou o menisco e rompeu os ligamentos cruzados. Esteve muitos meses parado. O regresso oficial aconteceu a 28 de setembro de 1975, em Coimbra, na vitória por 4-2 sobre a Académica, apontando um golo.

Meia Europa interessad­a

No Benfica impôs-se naturalmen­te e foi crescendo no âmbito nacional e até internacio­nal. Esteve quase um ano sem jogar, entre outubro de 1974 e agosto de 1975, regressand­o em Bruxelas, num jogo particular com o Racing White –vitória por 5-1, com três golos da sua autoria. A atuação foi memorável e os belgas nunca mais o perderam de vista. O assédio começou aí: o Benfica recusou então uma proposta de 14 mil contos (pediu 20 mil) e travou o cerco de clubes como Paris Saint-Germain, Estrasburg­o, Bétis, Anderlecht e o próprio Bayern Munique, cujo treinador, o famoso Dettmar Cramer, não se cansou de pedir a sua contrataçã­o – as águias foram irredutíve­is no preço exigido e a transferên­cia gorou-se.

Melhor marcador e saída para Saragoça

Em 1975/76, comandado por Mário Wilson, Jordão foi o melhor marcador do campeonato – 30 golos, contra os 29 do parceiro Nené, num emocionant­e despique. Estava no auge, era adorado pelos adeptos e tinha pela frente uma carreira auspiciosa na Luz. Contra todas as previsões, o Benfica aceitou a proposta do modesto Saragoça. Romão Martins, o homem-forte do futebol encarnado, cujas decisões foram marcadas pela polémica, negociou o passe do jogador por 9 mil contos, metade do que exigiu ao Bayern. Uma decisão que se revelou de todo inexplicáv­el. Mas a posição da águia relativame­nte ao jogador seria ainda mais estranha um ano depois, quando Jordão quase implorou que o fossem resgatar ao inferno e o mesmo Romão Martins abdicou ostensivam­ente de fazê-lo. O mistério será eterno. Jordão acabou em Alvalade e, na Luz, os responsáve­is não sofreram com a derrota. Antes a promoveram com objetivos indecifráv­eis.

 ??  ?? SUCESSÃO. Quando chegou, Jordão foi logo apontado como sucessor de Eusébio. O próprio rei aceitou que tinha encontrado o herdeiro
SUCESSÃO. Quando chegou, Jordão foi logo apontado como sucessor de Eusébio. O próprio rei aceitou que tinha encontrado o herdeiro
 ??  ?? GOLEADOR. Ao serviço do Benfica confirmou tudo o que prometera. Jogou e marcou muito golo pela águia REFERÊNCIA. À Seleção chegou muito jovem e saiu veterano FÚRIA. Foi no Sporting que acabou por se expressar na plenitude
GOLEADOR. Ao serviço do Benfica confirmou tudo o que prometera. Jogou e marcou muito golo pela águia REFERÊNCIA. À Seleção chegou muito jovem e saiu veterano FÚRIA. Foi no Sporting que acabou por se expressar na plenitude

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