Record (Portugal)

Acabaram-se as anedotas dos merceeiros

NÃO DEIXA DE SER UM FENÓMENO O SUCESSO DE JORGE JESUS NO BRASIL, FAZENDO-SE COMPREENDE­R E IDOLATRAR COMO NENHUM OUTRO SEU COMPATRIOT­A O FEZ NAQUELAS TERRAS DESDE QUE CARMEN MIRANDA SE VIU LEVADA DE MARCO DE CANAVESES PARA O RIO DE JANEIRO

- Leonor Pinhão Jornalista

Os brasileiro­s estão-se perfeitame­nte nas tintas para o acordo ortográfic­o. Escrevem como querem e não dão satisfaçõe­s ao minúsculo país de onde partiu Cabral há cinco séculos. Para os brasileiro­s, Portugal é, do ponto de vista ideológico, um repositóri­o de anedotas sobre merceeiros, enquanto, do ponto de vista gráfico, não passa de uma paisagem medieval de velhinhas cobertas de negro da cabeça aos pés. Ao contrário dos cidadãos estado-unidenses, que encontram distinção e incomparáv­el elegância no sotaque inglês puro dos ingleses do velho mundo, para os brasileiro­s a sonoridade do português falado em Portugal é uma mixórdia inqualific­ável e, sobretudo, incompreen­sível. Não deixa, portanto, de constituir um fenómeno o sucesso de Jorge Jesus no Brasil, fazendo-se compreende­r e idolatrar como nenhum outro seu compatriot­a o fez naquelas terras desde que Carmen Miranda se viu levada numa alcofinha de Marco de Canaveses para o Rio de Janeiro para se transforma­r no maior ícone brasileiro do século XX. Ao contrário de Jorge Jesus, que se expressa no dialeto genuíno e cheio da ginga dos subúrbios de Lisboa, Carmen Miranda falava e cantava em brasileiro do Brasil, o que tornou as coisas muito mais fáceis para ela no início. Só quando se viu exportada para os EUA, pouco antes do início da II Guerra Mundial, é que esta filha de Marco de Canaveses experiment­ou a dificuldad­e de ser entendida, mas como o público da Broadway e dos filmes de Hollywood gostava tanto dela, nunca a estranha sonoridade do seu português foi um obstáculo ao seu sucesso. Pelo contrário, acrescenta­va-lhe aquela dose de mistério e de exotismo indispensá­vel ao estrelato internacio­nal.

O futebol é hoje uma indús

tria tão poderosa quanto a do entretenim­ento, e bastaram quatro meses de trabalho no Brasil para transforma­r Jorge Jesus num ícone local e a tal ponto que ainda ninguém do outro lado do oceano Atlântico se queixou de não perceber patavina do que o treinador português diz quando fala no seu português arrevesado que punha os cabelos em pé aos puristas da nossa língua neste país de licenciado­s. E tal como Carmen Miranda, que entretinha os ‘gringos’ dos EUA com canções extraterre­stres como ‘Tico-tico no Fubá’, também Jesus entretém a gigantesca torcida do Flamengo e o Brasil inteiro com o seu futebol vencedor e com as suas rodas de imprensa numa língua antiga que só lhe reforça o estatuto de vindo de outro planeta.

Seja ou não campeão no Bra

sil, fraqueje ou não na Taça dos Libertador­es, o que Jesus já conseguiu no Brasil merece uma vénia. Acabaram-se as anedotas dos merceeiros lusitanos e do Portugal medieval. A nossa imagem lá agora é outra. Não sendo sofisticad­a (era exigir muito), é a imagem de um sujeito agitado, impulsivo e de desgrenhad­a cabeleira branca que, apesar de ser português, é mais competente – mas muito mais competente – do que os demais.

O QUE JORGE JESUS JÁ CONSEGUIU NO BRASIL MERECE UMA VÉNIA

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