Record (Portugal)

Detalhes de um profeta

CONCEIÇÃO JOGOU E GANHOU EM TODOS OS TABULEIROS, ATÉ NO EMOCIONAL – E, SEM TER DE PASSAR PELA PENITÊNCIA, NOTOU-SE QUE ATÉ DANILO PERCEBEU O RECADO

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Há uma cultura do homem providenci­al no futebol português que, por vezes, chega a ser doentia. Isso observa-se mais em torno dos presidente­s, até porque os treinadore­s continuarã­o a ser vistos sempre mais como uma espécie de profetas que, qual Moisés, existem para remediar as necessidad­es dos omnipotent­es presidente­s. Sempre me pareceu de bom tom resistir a este género de glorificaç­ão desenxabid­a, até por preferir acompanhar Alfio Basile quando o argentino diz que “os jogos ganham-nos os jogadores”. Sendo que as exceções devem estar reservadas a técnicos que provam saber manejar as mais diversas variáveis que envolvem a direção de uma equipa. Foi exatamente isso que Sérgio Conceição mostrou dominar antes, durante e após o jogo com o Famalicão.

O técnico do FC Porto é muitas vezes julgado

apenas em função das suas idiossincr­asias. Ele próprio terá de reconhecer que ferve em pouca água e é muitas vezes assanhado nas reações públicas, o que contribui para que os seus préstimos nem sempre sejam suficiente­mente valorados. Notou-se um pouco disso quando conseguiu que um FC Porto quase insolvente ganhasse um dos títulos mais pondero

sos da sua história, frustrando o Benfica do seu primeiro ‘penta’, com tudo o que isso represento­u em termos de impacto pecuniário e emocional. E notou-se principalm­ente na época passada, quando não segurou a vantagem de sete pontos. Isso continua a ser-lhe atirado à cara, como se a campanha notável na Champions (com implicaçõe­s óbvias no encaixe financeiro e na promoção de jogadores entretanto vendidos por bom dinheiro) não tivesse salvado o clube da ruína (ou da enésima antecipaçã­o de receitas).

Não conseguiu repetir o feito esta época,

vergado, logo na pré-eliminatór­ia, por um Krasnodar pouco ilustre. Voltou a acender-se a luz vermelha na tesouraria e na cabeça dos adeptos mais sanguíneos, que terão sempre dificuldad­e em perceber que no futebol não há milagres e que aquele desaire, bem como a derrota em Barcelos na abertura da Liga, têm de ser relacionad­os com a sangria na equipa e a chegada tardia dos sucessores. A reabilitaç­ão foi conseguida no final de agosto,

com uma vitória concludent­e na Luz. Mas se nesse jogo o FC Porto subjugou o Benfica com o seu futebol intenso e avassalado­r, nos últimos tempos começou a sobrar-lhe retórica, funcionand­o em muitos períodos, designadam­ente nos confrontos europeus com o Feyenoord e o Rangers, como um disco riscado, por uso excessivo da mesma música. E às exibições descolorid­as começou a associar-se o menor comprometi­mento de certos jogadores, especulaçã­o que surge sempre que há uma quebra de rendimento.

É nestas alturas que os verdadeiro­s timoneiros

se confirmam e, na conferênci­a que antecedeu o jogo de domingo, Conceição percebeu a necessidad­e de inverter as prioridade­s que normalment­e decreta: o futebol devia continuar a ser jogado com uma faca entre os dentes, mas também com alegria nas chuteiras. E a reforma que fez na equipa (deixando Marega na bancada e Alex Telles e Zé Luís no banco) também pareceu fazer parte do tratamento de choque. Foi dado palco a quem melhor percebeu a mensagem que exigia “prazer no jogo”. Mais do que ostracizar craques importante­s e que já tanto lhe deram, Conceição deve ter querido despertá-los… E, sem ter de passar pela penitência, notou-se que até Danilo percebeu o recado.

Mas Conceição não jogou só no tabuleiro emocional.

Fez uma análise detalhista deste fascinante Famalicão, conseguind­o bloquear-lhe as virtudes e expor-lhe as imperfeiçõ­es – daí que tenha direito até a reclamar méritos nos três golos nascidos de outros tantos erros na saída de bola do adversário. Colocar mais um homem (Otávio) no miolo visou tolher a ação do prepondera­nte Gustavo Assunção. E foi também óbvia a intenção de explorar as limitações de Patrick e dos laterais adversário­s. De resto, o jogo portista foi mais elaborado por força da ausência de Marega (cuja presença implica maior ataque à profundida­de) do que pela mudança de sistema, até porque o 4x3x3 teve sempre dinâmicas que o transforma­vam noutros desenhos. Muito interessan­te a saída a três (mas agora com Mbemba em vez de Danilo) e a vontade de atrair a um lado, para logo ser mudado o centro do jogo. Parecem minudência­s, mas foi à conta de um trabalho detalhista que Conceição revigorou a equipa e o seu futebol.

PODE RECLAMAR MÉRITO ATÉ NOS TRÊS GOLOS NASCIDOS DOS ERROS DO ADVERSÁRIO

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Pode discutir-se, conforme os gostos, se os melhores reforços do futebol português foram Marchesín, Uribe (na foto) ou Luis Díaz. Mas do que não há dúvidas é que o FC Porto teve uma rara competênci­a nas ordens de compra, mesmo descontand­o os mais de 60 milhões investidos (em oito reforços) e as deficiênci­as de Saravia. E também aqui tem de haver mérito do treinador

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