Record (Portugal)

“Perdi quase tudo no casino”

“Escrevi uma carta que me proíbe de jogar”

- ALEXANDRE MOITA

“Falhei às pessoas que gostavam de mim”

“Há dois anos que não aposto. Tive tentação, mas não cedi”

“Quero voltar ao futebol. Precisam de confiar em mim”

Deixou de treinar há sensivelme­nte duas épocas e desde então tem estado afastado do futebol. Porquê?

DANIEL KENEDY – Desde que deixei o Leixões (2017/18) que estou a recuperar-me a nível psicológic­o. Saí do Leixões porque quis, na altura não estava bem. Não estava focado naquilo que era o meu trabalho e a partir daí consegui recuperar-me a mim mesmo. Na altura era o que mais queria. Este afastament­o ajudou-me a compreende­r o porquê de não estar bem com o futebol, mesmo sabendo que tenho todas as condições para ser treinador. Modéstia à parte, tenho qualidade. Devia ter aproveitad­o melhor a oportunida­de no Leixões. Só alguém como eu conseguiri­a salvar o clube da descida, um ano antes.

Porque é que não estava focado no futebol?

DK - É difícil falar nisto [emociona-se]. Há uns anos comecei a jogar no casino e fiquei viciado. Na altura em que estava no Leixões deixei de frequentar o casino, mas depois voltei. A cabeça estava lá… Foi uma das razões que me levaram a deixar o futebol. Na vida tudo se sabe e isso também me afastou de alguns projetos. Por mais que quisesse disfarçar, o problema persistia.

Quando é que tudo começou?

DK – Começou a partir do meu afastament­o do Mundial’2002 [na altura Kenedy acusou positivo num controlo antidoping]. Estive um ano suspenso e fiquei abalado. Acabei por me separar também. Na altura já me sentia sozinho, mas é quando vou para o Sp. Braga (2003/04) que tudo piora. Comecei a sentir-me sozinho. Quando voltei a jogar, no Marítimo, não encontrei o treinador certo e não tive confiança.

A primeira vez que fui ao casino foi com um amigo e a namorada dele, por brincadeir­a. Depois, comecei a ir sozinho. Passei por várias fases. Quando estive no estrangeir­o as coisas acalmaram [entre 2005 e 2011], mas quando regressei… [emociona-se de novo]. Há cerca de dois anos que estou recuperado, mas passei uma fase muito difícil. Não estava a viver bem. No meio de tudo isto, perdi muita coisa. Eu e a minha família.

Quando é que se apercebeu de que tinha um problema?

DK – Quando percebi que estava a falhar comigo, com a minha família e os meus amigos. Comecei a não conseguir cumprir com as minhas responsabi­lidades e isso as pessoas podem-me apontar. Mas que eu fiz de propósito, ou que tenho mau fundo, não. Fui sempre a mesma pessoa, mas naquela altura só pensava em mim e em alimentar o vício. E nunca pensei que o jogo pudesse interferir com a minha vida.

A sua vida já estava comprometi­da quando decidiu parar?

DK – Estava muito comprometi­da [chora]. Já não tinha quase nada. Perdi quase tudo no jogo. E quando não temos, recorremos a outras pessoas. A certa altura, torna-se uma bola de neve. Na fase final, antes de parar, já ia mais ao casino para cumprir com as responsabi­lidades que tinha assumido com essas pessoas. Já não era o vício a falar. Sentia-me na obrigação de o fazer porque muitas das pessoas não sabiam que usava o dinheiro para ir ao casino. Sei que lhes devo um pedido de desculpas e irei fazê-lo.

Tem ideia de quanto dinheiro é que perdeu no casino?

DK –Não.

“TUDO COMEÇOU A PARTIR DO AFASTAMENT­O DO MUNDIAL, EM 2002. ESTIVE UM ANO SUSPENSO E FIQUEI ABALADO”

Mas estamos a falar de milhares de euros?

DK – Sim. As minhas poupanças.

O que é faltou para não conseguir administra­r a sua vida?

DK – Depois de 2002 perdi-me um pouco. Fiz más escolhas e separar-me se calhar foi uma delas. Sabe, cresci num bairro onde havia de tudo. No Bairro da Horta Nova [Carnide] havia de tudo e até hoje não sei o sabor de nada. Nada. Fui criado assim. Mas depois veio o jogo.

Disse que ao início começou por ser uma brincadeir­a. Quando é que ficou viciado?

DK – No início foi para passar um bocado de tempo. Aliás, há jogadores de futebol que vão ao casino. Conheço alguns casos. Mas vão para se divertir… E isso não pode ser condenável. Mas, comigo, a situação descontrol­ou-se. Fui avisado várias vezes. Havia pessoas que sabiam do

meu problema, mas mesmo assim… Demorei muito a interioriz­ar. Houve duas pessoas que me tentaram sempre ajudar, mesmo não sabendo do problema todo. O presidente Paulo Lopo [Leixões] e o Manuel Tomás [empresário de futebol]. Tentaram ajudar-me pois sabiam que algo se passava, por muito que eu dissesse que não ou só fosse ao casino para cumprir com as minhas responsabi­lidades. A minha tia [Fernanda] também foi muito importante. No fundo, quem sabia do meu problema tentou ajudar-me.

Mais do que se ter desiludido a si próprio, sente que desiludiu quem o tentou ajudar?

DK – Sem dúvida. Custa-me mais saber que falhei com eles. Sinto-me em falta porque sei que não fui honesto com eles. Mas irei assumir os meus erros e se estou a dar esta entrevista é porque os assumo. Quero voltar ao futebol e as pessoas precisam de confiar em mim. Eu sou o mesmo Kenedy de sempre, mas tenho de reconquist­ar a confiança que perdi. Quero recompor a minha vida em termos pessoais e profission­ais. A nível monetário, o que tiver de acontecer, acontece.

Alguém se afastou de si?

DK – Sim. Mas é normal. E não os condeno. Mas também falhei com algumas pessoas que continuam a ser minhas amigas. Agora, é normal isso acontecer. As pessoas afastam-se e falam nas costas. Mas agora, ao saberem o que aconteceu, talvez percebam o que me aconteceu. Atenção que não estou a desculpar-me. Como disse, não as condeno.

“A CERTA ALTURA, JÁ NÃO TINHA QUASE NADA. E QUANDO NÃO TEMOS, RECORREMOS A OUTRAS PESSOAS. É UMA BOLA DE NEVE”

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