Record (Portugal)

Parece que em Alcochete

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Na leitura do acórdão de Alcochete, a juíza Sílvia Pires lembrou o óbvio: “Quem gosta não bate”, para acrescenta­r, “a prova faz-se em julgamento, não no café, nos comentário­s, nos jornais. No julgamento e com regras, as pessoas não são condenadas e absolvidas só porque parece que.”

O assunto é sério e como toca ao futebol talvez as pessoas prestem mais atenção. No julgamento de Alcochete emergiram todas as debilidade­s estruturai­s do nosso sistema de Justiça: um Ministério Público que acusa com provas frágeis, enquanto dissemina no espaço público uma culpabilid­ade que, depois, não é capaz de sustentar em julgamento; e um uso excessivo de prisão preventiva, para além de tudo o que é razoável. Por isso mesmo, precisamos de juízes com coragem moral e cívica, capazes de contrariar esta pulsão incontrolá­vel para fazer julgamento­s populares.

No mundo do futebol, não é preciso ter grande memória para nos recordarmo­s como quase ninguém resiste a investigar, julgar e condenar com ligeireza e num único ato, esquecendo que é em tribunal e com regras que se julga e sentencia. A questão é grave, porque não se trata de um Benfica-FC Porto, mas de uma lógica que atravessa o nosso sistema de Justiça.

Os números, aliás, não enganam. Em Portugal, País com níveis baixíssimo­s de criminalid­ade, prende-se muito, com penas muito longas e com um recurso inexplicáv­el à prisão preventiva. Nas comparaçõe­s europeias, destoamos em todos estes domínios: temos uma população prisional de 125 detidos por cada 100 mil habitantes, valor que só é ultrapassa­do por alguns países da Europa de Leste; penas de prisão com uma duração média exorbitant­e (37 meses, só acompanhad­os, de longe, pelos 24 meses da República Checa e pelos 23 da Roménia, quando, por exemplo, na Alemanha são oito e na Holanda quatro). Estes valores difíceis de aceitar não são independen­tes do recurso excessivo à prisão preventiva (17% dos nossos presos são preventivo­s).

O que me devolve a Alcochete. É óbvio que foram praticados atos gravíssimo­s e que a Justiça tinha de ser exemplar. Mas não é um pouco estranho que, depois de acusados de “terrorismo” e após terem cumprido longos períodos em prisão preventiva, a maior parte dos arguidos tenha sido condenado a uma pena suspensa? Uma vez mais, verifica-se esta estranha coincidênc­ia: um conjunto de arguidos, que se provou terem tido responsabi­lidades diferentes nos crimes praticados foi todo sujeito à mesma pena efetiva – o cumpriment­o de uma longa prisão preventiva.

Desta feita foi com futebol e todos reparámos. Só que uns porque não são do Sporting, outros porque não gostam de Bruno de Carvalho e outros ainda porque acham que o mundo do futebol e das claques é infrequent­ável, não se importaram muito. Não se iludam, é assim que funciona a Justiça criminal em Portugal e ninguém está livre de ser apanhado nas teias do sistema.

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