O regresso que ninguém queria
Num dia, o ‘L’Équipe’ faz capa com o recomeço do campeonato português. A manchete exclama “Portugoaaal!” e na imagem dois jogadores do Portimonense celebram a vitória. No dia seguinte são as imagens dos vidros partidos do autocarro da equipa do Benfica e os ferimentos, ligeiros, dos jogadores que correm Mundo. Era difícil imaginar tamanha falsa partida!
O vandalismo intimidante nas casas dos jogadores e de Bruno Lage é igualmente grave. Quem é esta gente que se dedica a encontrar o endereço dos atletas e equipa técnica? Seguem-nos?
E acham que o medo e insegurança que os jogadores e famílias agora sentem vai melhorar o rendimento em campo? Claro que não.
Depois de Alcochete, gritou-se: “Basta!” Afinal, mesmo que menos graves, os episódios sucedem-se. A prova existente e o enquadramento legal talvez não desse para mais, mas a sen- tença do caso acabou por não passar para a sociedade a mensagem que os acontecimentos na Academia justificavam.
O recomeço do campeonato
em vez de simbolizar o regresso da sociedade à normalidade possível após a fase aguda do surto da Covid-19, trouxe de novo a parte indesejável da normalidade no futebol portu- guês. A crença na capacidade transformadora da pandemia é manifestamente exagerada. “Não acho que venha aí um Mundo novo, mas as pessoas mudaram”, dizia o escritor Gon- çalo M. Tavares numa entrevis- ta publicada a semana passada no ‘Negócios’. Já os “sistemas coletivos” têm uma grande capacidade em regressar ao que eram. É o caso do futebol.
O fim de semana trouxe novas evidências desse ‘sistema’, com a notícia do ‘Público’ sobre os contratos de jogadores entre Benfica e Desportivo das Aves, cheios de cláusulas leoni- nas e de legalidade duvidosa que nos põe a pensar sobre que vantagens compram estas relações opacas. Os contratos em causa foram obtidos na operação ‘Mala Ciao’, iniciada em 2018, em que são investigadas suspeitas de empréstimos encapotados de atletas e vicia- ção de resultados, que envolvem ainda o V. Setúbal e o P. Ferreira.
Os contratos revelados, e o Benfica não será o único a tê-los, são abusivos em relação aos direitos dos atletas, como a cláusula antirrivais, que é prática corrente noutros países. O artigo 124.º do regulamento geral da Liga de Clubes diz expressamente que “são nulas as cláusulas inseridas em contrato de formação ou contrato de trabalho desportivo visando condicionar ou limitar a liberdade de trabalho do jogador após o termo do vínculo contratual”.
O ‘Público’ noticia ainda a existência de uma conta-corrente oficiosa entre o clube da Luz e o atual lanterna-vermelha do campeonato, que o Benfica considera normal e em tudo semelhante às contas-correntes que tem com fornecedores. Não é normal haver uma conta-corrente entre dois adversários numa prova desportiva, porque isso é suscetível de criar uma relação de dependência e domínio.
Quantas contas-correntes entre clubes haverá no futebol português? A Federação sabe? A Liga sabe? A regulação não assegura a transparência e probidade na relação entre os clubes e a fiscalização das regras que existem parece ser pouca ou nenhuma. Enquanto assim for, a verdade desportiva poderá sempre ser posta em causa.
A REGULAÇÃO NÃO ASSEGURA PROBIDADE E TRANSPARÊNCIA NA RELAÇÃO ENTRE CLUBES
QUANTAS CONTAS-CORRENTES ENTRE CLUBES HAVERÁ NO FUTEBOL PORTUGUÊS? A FEDERAÇÃO SABE? A LIGA SABE?