Liga dos Campeões em Lisboa é potencial ‘presente envenenado’
DE ‘HERÓIS DO CONFINAMENTO’ A ‘CARRASCOS DO DESCONFINAMENTO’, PORTUGAL CHAMA PARA SI A REALIZAÇÃO DA CHAMPIONS. UM RISCO GRANDE E MUITAS QUESTÕES EM ABERTO
çO primeiro-ministro, António Costa, proferiu esta semana uma das frases do ano, quando afirmou que a realização do último pedaço de Champions “é um prémio aos profissionais de saúde”.
É uma declaração ousada e muito arriscada, num contexto de pandemia que tem piorado em Portugal, a obrigar os ditos profissionais de saúde a um estado de alerta suplementar, para além daquele que decorre, em condições normais, da sua nobre profissão.
Em condições normais, com o futebol na máxima pujança como espectáculo de massas, trazer a Champions para Portugal seria sempre merecedor dos melhores encómios.
Contudo, como sabemos, nem vivemos tempos normais nem o futebol está na sua máxima pujança. Aliás, o futebol é uma das actividades que vão sofrer mais até retomar a normalidade e, por isso, seria recomendável apostar mais na moderação do que neste tão discutível triunfalismo.
Não há sinais de arrependimento nem da adopção de novas dinâmicas para o futebol, mas isso são contas de outro rosário.
Num contexto tão incerto como
este em que estamos todos mergulhados, todas as cautelas são poucas e as manifestações de regozijo protagonizadas por Marce- lo Rebelo de Sousa e António Cos- ta, pródigos em elogios à iniciativa da FPF e à proactividade de Fernando Gomes e Tiago Craveiro, estão longe de corresponder ao sentir global da nação.
Tenho sérias dúvidas de que haja profissionais de saúde que encarem essa ‘conquista’ como um prémio e tenho, aliás, a mais profunda convicção de que a esmagadora maioria não se revê nessa declaração e muitos deles até a entendem como provocação.
Todos eles, principalmente nos
hospitais públicos, trocariam a Champions por melhores condições de trabalho, melhores expectativas de carreira e correspondentes remunerações e não é crível que as receitas da Champions sejam canalizadas para que os profissionais de saúde sejam compensados pelos altos serviços prestados ao País.
Se ninguém tem dúvidas de que se vai falar muito de Lisboa e de Portugal se e quando a competição começar (temos de conviver com o vírus e com os ‘ses’ que ele nos impõe…), resta saber como se vai distribuir e em que percentagem o tipo de publicidade – a posi- tiva e a negativa – suscitada pelo evento.
Trazer a Champions para Portu- gal pode ser considerado uma honra ou o seu contrário e se é evidente que, no contexto actual de relações entre a UEFA e a FPF, estamos talvez no pico mais alto de coexistência e entendimento, ninguém sabe muito bem qual vai ser o quadro global da pandemia na Europa em Agosto e, em particular, no nosso país.
Nesta montanha-russa de sensações e informações, na qual a DGS vem afirmando uma coisa e o seu contrário em dias diferentes numa mesma semana, como muito bem parodiou há dias o Herman José, ninguém pode afirmar com total certeza se os jogos da Champions em Lisboa vão ter público ou não, sendo cer- to que é preciso adoptar uma postura muito responsável em relação a esta matéria, porque os riscos são grandes e certamente ninguém quererá transformar Portugal – por causa do futebol – num caso crítico, em termos de saúde pública.
Não se faça, pois, a festa antes do tempo nem se atirem os foguetes extemporaneamente. Às vezes colhe-se a sensação de que a relação da política com o futebol se resume a uma espécie de ‘reality show’ e, neste caso concre- to, só falta apurar, ao certo, quem é o ‘agricultor’, sendo certo, porém, que todos estão empenhados em usar o mesmo tipo de adu- bo para fazer florescer este tão in- tenso namoro.
O exercício dos poderes públicos tem sido transformado, nos últimos tempos, numa espécie de concurso televisivo, caindo-se numa ‘banalização de proximidade’ que nivela por baixo a visão que a população tem da classe política e, nestas coisas, talvez seja recomendável nem o oito nem oitenta, sobretudo quando está a em causa a saúde pública e a sensação de (in)segurança das pessoas.
Há uma sintonia nunca antes vista entre a Presidência da República, o Governo e a Federação Portuguesa de Futebol.
A classe política, por razões óbvias, e vejam-se os casos emanados do Parlamento, gosta de extrair o que de melhor lhe pode dar o futebol – e isso tem a ver com protagonismo, colagem aos pontos mais altos dos empreendimentos, das festas e dos triunfos; em contraponto, quando o futebol oferece casos, caminhos e casões, com suspeitas por exemplo de corrupção ou outro tipo de cri- minalidade, fogem dele como o diabo da cruz.
É assim, em Portugal sempre foi um pouco assim, um terreno de poucas coragens e atrevimentos, resultando daí medos e cumplicidades que não fazem bem nem ao futebol nem à própria democracia.
O treinador Rúben Amorim, naquela sua aparência de miúdo crescido, disse há dias uma coisa que faz muito sentido: “Para nós é um orgulho receber a melhor prova de clubes da Europa. Mas aproveito para dizer que o empenho que aqui foi aplicado poderia ter sido utilizado para terminar o Campeonato de Portugal.”
A relação com as elites pode fazer bem ao ego e terá certamente pontos positivos a extrair, mas o futebol português não crescerá na globalidade se os clubes médios e pequenos continuarem a ser tratados com distância e desprezo.
Pensem nisto: bastava que, por qualquer inimaginável decisão da justiça desportiva, o Benfica, o FC Porto e o Sporting estivessem agora a disputar o Campeonato de Portugal e a decisão político-federativa de colocar as ‘fichas todas’ na retoma da I Liga não teria sido a mesma.
De resto, não me admiraria nada que fosse dada luz verde à entrada de público nos jogos da Champions, mas não gostaria nada de ver Portugal utilizado como cobaia ou como uma espécie de laboratório de experiências ou ‘caixote do lixo’ da Europa.
Lisboa vive uma situação particularmente difícil no contexto da avaliação dos efeitos da pandemia no nosso país e prémio para os profissionais de saúde seria mesmo não lhes criar um stress adicional, numa situação de potencial ruptura do SNS, cujo cenário será melhor nem sequer imaginar.
Vivemos tempos muito imprecisos em que existe uma linha muito ténue entre segurança e insegurança – e tudo se transformou num risco.
Um risco calculado para a Presidência da República, para o Governo e para a FPF. Um risco sério para os portugueses.
Só nos compete desejar que a Champions em Lisboa não seja um presente envenenado. Um prémio para os profissionais de saúde é que não é – e aqui fica a minha homenagem para todos eles.