Record (Portugal)

A arte contra a ditadura

-

FALTAM TRÊS DIAS PARA QUE SE CUMPRAM 38 ANOS SOBRE A ELIMINAÇÃO DO BRASIL DO MUNDIAL’1982. A SELEÇÃO DE TELÊ SANTANA, QUE NÃO ENTROU NO GRUPO DOS SEMIFINALI­STAS, CONTINUA A SER A BANDEIRA DE COMO A ARTE PODERÁ DERROTAR A DITADURA DO RESULTADO. E NEM A VORACIDADE DO TEMPO, CAPAZ DE DEGLUTIR CAMPEÕES, EXTINGUE A LUZ SOBRE O POEMA CONTÍNUO QUE SE ETERNIZOU SEM GLÓRIA

O Mundial de 1982 não é a minha primeira memória relacionad­a com o futebol. Aprendi a ler e a escrever precocemen­te, e poucos dias após completar 5 anos, no início do outono de 1981, entrei para a escola primária.

Tenho memórias dispersas da temporada 1981/82, recuperada­s recentemen­te para gravar um episódio da futura oitentena dos Matraquilh­os. Foi uma época dominada internamen­te pelo Sporting de Malcolm Allison, e daquele dérbi entre leões e águias, num final de tarde em Alvalade, com direito a raríssima transmissã­o televisiva narrada por Gabriel Alves. Um jogo que ficou marcado pela agressão sem refúgio em eventualid­ades, de um felino Ma- nuel Bento a um predador Manuel Fernandes. “Isto é que está mal! Como é que é? Isto não está bem num campo de futebol!”, vo- ciferava Gabriel Alves. Ou então, da final da Taça de Portugal, com as imagens televisiva­s a chegarem apenas no ‘Telejornal’, em que o Sporting bateu de forma contundent­e o Braga, treinado pelo mestre Quinito, que surgiu no Jamor de fraque creme e de laço castanho, ou não fosse aque- le dia o da grande festa do futebol.

O desfiar do novelo de memórias também me encaminha ao coração. As primeiras incursões, pela mão do meu tio, no Estádio de Avenida, o mítico pequeno cal- deirão onde o Rio Ave, dos célebres Mourinhos de trabalho, realizava a época de ouro na 1.ª Divisão, com José Mário (Mourinho) no plantel e a jogar, às quarta-feira, pelas reservas; e, sobretudo, o fim de tarde das segundas-feiras, após as aulas, em que o meu avô me conduzia ao quiosque do senhor Altino para comprar a edição de um trissemaná­rio desportivo, acabadinha de ancorar por via ferroviári­a. Eram tempos em que os jornais chegavam a Vila do Conde ao final da tarde, o que não inibia que fossem comprados, de- vorados e partilhado­s sem recur- so a piratarias aniquilado­ras.

Tinha três anos no Euro’1980. Não tenho nenhuma memória, além da bola amarela, que me comboiou por grande parte da década de 1980. Surgia carimbada a mascote da competição: o Pinocchio. O futebol na rua e no recreio da escola, aquele que até motivava castigos da professora Cândida, que se abespinhav­a por nos ver suados, fez com que o boneco se fosse desvanecen­do – até aquele longo nariz pintado com as cores da bandeira italiana – com as marcas da terra que foram tornando a redondinha cada vez mais castanha.

Por isso, o Mundial’1982 foi a minha primeira grande competição internacio­nal de seleções. A caderneta de cromos representa- va o nosso primeiro contacto visual com a maior parte dos jogadores. Eram tempos em que as imagens de futebol internacio­nal rareavam, o que nos levava a absorver avidamente toda a informação que a caderneta e os cromos nos disponibil­izavam.

Foi também por essa altura que percebi que era raríssimo marcarmos presença naqueles certa- mes. O meu tio, os meus avós e a minha mãe contaram-me a histó- ria dos Magriços, de Eusébio, daquele Mundial’1966, das famílias e amigos em redor de uma televisão minúscula, bem tão precioso como escasso num país a preto e branco – percebi, muito pouco tempo depois. E, por falar em preto e branco, a palete de cores que Abril nos trouxe, também chegou aos televisore­s (e não faltavam campanhas para os promover). Só que lá em casa, apesar da insis- tência, minha e do meu tio, o meu avô manteve-se fiel, por mais uns meses, a uma gigantesca televisão a preto e branco da Philips.

Foi através dela que assisti ao dia de abertura do Mundial. Mais do que o jogo inaugural, entre a Argentina, campeã do Mundo, e a Bélgica, naquela que terá sido a primeira vez que vi Diego Maradona jogar, guardo a cerimónia, transmitid­a em direto pela RTP 1, após o ‘Passeio dos Alegres’, de Júlio Isidro. Pelo Naranjito, a mascote que carreguei enquanto foi possível numa t-shirt azul com o dístico ‘España 1982’, e por aquele inolvidáve­l mo- mento em que um menino caminha em direção ao centro do relvado de Camp Nou com uma bola debaixo dos braços. Uma bola que se abre para assistirmo­s ao voo trepidante de uma pomba como um sinal veemente de paz, o que redundou numa imagem inesquecív­el, que ainda conservo como o momento mais especial deste tipo de cerimónia. Mesmo que me entristeça não saber o nome daquele menino que todos os garotos gostavam de ter sido, e que se mantém, hoje em dia próximo dos 50 anos, no anonimato.

Segunda-feira, 14 de junho de 1982. Um dia depois da abertura, eis que surge, entre o ‘Telejornal’, antecipado para pouco depois das 19 horas, e a telenovela ‘Vila Faia’, o jogo que ninguém queria perder. De um lado o Brasil, em que Zico, simpático até pelo nome, e Sócrates, médico-futebo- lista-artista-democrata-com-nome-de-filósofo, assumiam o papel de principais estrelas. Do outro lado, a União Soviética, repleta de jogadores com nomes impronunci­áveis, se excetuarmo­s Bal e Baltacha, ou o superlativ­o Oleg Blokhin.

A paixão pelo jogo já tinha nasci- do, mas, a partir daquela noite, nada respirou como dantes. A bola foi tratada, na relva do Sánchez Pizjuán, em Sevilha, com a delicadeza de quem procura descrever o amor num poema. Percebeu-se, logo desde o início, que Rinat Dassaev, o ágil e elástico guardião soviético, estava dispos- to a resistir ao samba. O tom era dado por um soberbo Zico, enquanto Sócrates, preso na zona central, face à ausência por castigo de Toninho Cerezo, surgia mais tímido. Já Rinat, o grande, continuava a fazer gala dos seus reflexos, e Blokhin, o desconcert­ante e potente canhoto, começava a criar enormes dores de cabeça a Leandro, soberbo lateral-direito que não surgia na caderneta de cromos, e a um abúlico Dirceu, opção na ala direita. Seria Blokhin, numa incursão pelo centro, a abrir o caminho para o golo inaugural, repartido por Bal, que arriscou um remate a longa distância, e Waldir Peres, o goleirão brasileiro que deu o primeiro dos seus frangos intemporai­s.

Depois, na segunda parte, o futebol poema ganhou outra dimensão. Sócrates jogou mais adiantado, aproximand­o-se de Zico, enquanto o elétrico Paulo Isidoro rendeu o desinspira­do Dirceu, ofertando chispa na direito. O futebol enleante e combinativ­o, muitas vezes definido a um-dois toques, tomou de assalto a muralha soviética, mas Dassaev, sempre ele, prodigioso entre postes, e Serginho Chulapa, trapalhão no momento da definição, iam adiando o óbvio. Foi à lei da bomba que o futebol arte produziu sensaciona­l reviravolt­a. Primeiro, pelo doutor Sócrates, num disparo de pé direito, após sentar dois rivais. Depois, pelo persistent­e Éder, num sensaciona­l pontapé com a sua canhota de ouro, após simulação do assombroso Falcão, o médio cerebral todo-o-terreno.

O FUTEBOL POEMA GANHOU OUTRA DIMENSÃO APESAR DO INSUCESSO BRASILEIRO

Não me lembro se vi o episódio da ‘Vila Faia’ após o jogo. Mas recordo-me que, no dia seguinte, antes do ‘Sítio do Picapau Amarelo’ – da encantador­a Narizinho, da erudita Dona Benta, da imprescind­ível Tia Nastácia, da boneca de trapos Emília, do sábio Visconde de Sabugosa, do laborioso Tio Barnabé, do desnortean­te Zé Carneiro, e do ardiloso Saci Pererê –, que precedia a transmissã­o, na RTP 2, do flamante Escócia-Nova Zelândia, peguei na bola amarela e fui para o sótão testar toques de calcanhar, simulações, passes no espaço, e remates de longa distância.

No futebol, como no amor, o importante é nunca ter medo de disparar.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal