UM TROFÉU COM 75 ANOS
Ontem, um dia depois de o Sporting Clube de Portugal cumprir 114 anos de existência, evocou-se a data em que, há 75 anos, os leões venceram a Taça no Campo das Salésias
çA 1 de julho de 1945, há 75 anos completados ontem, e também no momento em que o Sporting festejava o 39º aniversário, o clube receberia de presente a Taça de Portugal. A final foi disputada no Campo das Salésias, recinto do Belenenses, o primeiro campo relvado que existiu em Portugal. E à festa também se assistia de camarotes improvisados nos prédios envolventes, fosse dentro dos mesmos ou no registo… ‘Zé do Telhado’! O outro finalista era o Olhanense, e do Algarve chegaram também muitos adeptos de carro, camioneta ou comboio para fazer a festa. Num dia de calor intenso, os algarvios davam à costa com o objetivo de fazer daquele encontro a sua praia. O estádio teve uma enchente nunca vista! Apesar de chegar da ‘província’, o Olhanense já vencera o Campeonato de Portugal de 1924, quando, no Campo (se fez) Grande e, também em Lisboa, ganhou por 4-2 ao… FC Porto, num estádio que à época era do… Sporting e que, em 1945, pertencia ao… Benfica! Júlio Costa, o capitão de 1924, disse que a festa do povo algarvio foi tanta, que chegou a Olhão num dia e só entrou em casa… dois dias depois! Agora, os ‘novos de Olhão’ alvitravam prognósticos como o de Grazina que, após dois furos na camioneta que os levou para Lisboa, tomou-os simbolicamente como se fossem sinal de dois golos sem resposta que marcariam ao Sporting! Não faltou apoio ao Olhanense – e não seria maior se tivesse disputado a final no seu próprio campo –, pois nas Salésias quem era sportinguista apoiava os leões, mas todos os outros – algarvios de gema e os emprestados de Lisboa – estavam pelos de Olhão! É que, ao contrário do que sucede noutros âmbitos, no desporto o sentido bairrista não existe, pois ninguém vê com bons olhos o sucesso de um rival de proximidade geográfica. Entre a assistência encontrava-se o Presidente da República, general Óscar Carmona, acompanhado por um séquito de outros governantes, numa demonstração do impacto do desporto na política. No que diz respeito ao jogo propriamente dito, o campeão do Algarve venderia bem cara a vitória aos leões (1-0), que se encontravam enfraquecidos, entre outros fatores pela ausência, por castigo, do avançado Fernando Peyroteo e por ter jogado a meio da semana com o Benfica, num terceiro jogo de desempate de acesso à final.
De Abraão a Jesus!
Com os dois guarda-redes (Azevedo e Abraão) em bom plano, o intervalo chegou sem golos. Azevedo, do Sporting, já tinha efetuado, entre outras, duas grandes defesas com os olhos, que embateram na trave e no poste, a remates de Cabrita. Essa má sorte de Cabrita, qual sacrifíciodocordeiroparaexpiação dos pecados, passaria mais tarde para as mãos de Abraão.
Na segunda parte, o Sermão do Santo Sporting aos peixes não estava a surtir efeito sobre aqueles que já haviam nascido filhos de pescadores. No entanto, mesmo sob o apito final e quando cheirava a uma prolongada maresia, o Olhanense quis replicar o guião da peça ‘Fora dos Eixos’ que estreara no Coliseu doPortoe,numgolpedeteatro,sofria o golo da derrota.
Numa bola dividida na área do Olhanense, ela sobrara para Jesus CorreiaquerematoueAbraãonãoa agarrou, pelo que se à primeira ‘Jesus perdoa’, à segunda Jesus fez golo, por mais que a Abraão doa! Ainda para mais, quando Jesus (Correia) joga em casa, ou seja, no campo de… Belém! O mais caricato é que, fruto de lesão anterior, Jesus Correia vagueava pelo campo coxeando, pelo que era quase desconsiderado pelos algarvios. Foi, deste modo, um Jesus coxo que assumiu em seu nome o milagre do
paralítico e disse a si mesmo: levanta-te e anda! Ah, e já agora, faz golo! E ele… fez! Lá diz o povo: mais depressaseapanhaummentiroso… Já Abraão, até aí seguríssimo, abriu o livro da Bíblia e foi escolhido para defender sem segurança uma bola mal rematada e que, ainda assim, não conseguiu segurar… o que viria a tornar-se fatal para os seus seguidores que esperavam fazer das Salésias a sua histórica Terra Prometida de abundância e encómios desportivos. Foi Abraão que, como no livro dos Génesis, esteve na génese da derrota: figura central do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, tornara-se também, naquela defesa incompleta, figura grata do… sportinguismo. O epílogo da Taça de Portugal de 1945 deu-se logo de seguida, com o apito final do árbitro e a bênção de Jesus (Correia). E os sportinguistas disseram… ámen! Antes ainda do ‘ide em paz e que o bom futebol vos acompanhe’, o público viu o capitãodosleões,ÁlvaroCardoso,subir ao camarote presidencial e receber a Taça do ministro da Guerra, uma vezqueCarmonatinha–quemsabe se para apanhar a camioneta sem grandes filas – abandonado o estádio minutos antes do final do jogo! Abraão, que significa ‘pai de muitos’, foi patriarca de toda uma região e o guardião da fé na vitória que lhe fora confiada pela imensidãodecrentesalgarvios.Noentanto, da mesma forma que Abraão (o original) se sujeitou ao rei do Egito e perdeu a sua mulher, também este Abraão deixou a sua apetecida e amada Taça escapar de Olhão e, abrindo a Bíblia da Taça, passou do Génesis para o fim do livro, contribuindo, inconscientemente, para o Apocalipse do Olhanense!