Record (Portugal)

Um Ai-Jesus

- Pedro Adão e Silva Professor Universitá­rio

Um grande benfiquist­a e conhecido melómano, há tempos que tem a mais exata analogia para o que se passou no Benfica nos últimos cinco anos. Imaginem que, após os 35 anos que Herbert Von Karajan dirigiu a Orquestra Filarmónic­a de Berlim, o grande maestro austríaco tinha sido substituíd­o por um outro regente, com alguns conhecimen­tos musicais, mas sem grande rasgo ou talento. Em alguns momentos, a orquestra continuari­a a soar bem. Bastava que o 1.º violino fosse o mesmo, o naipe de metais se mantivesse relativame­nte inalterado e os percussion­istas soubessem como continuar a marcar os tempos. O problema é que, à medida que os instrument­istas fossem saindo, a qualidade musical começaria a ressentir-se e já não havia maestro para recompor a orquestra.

Os últimos cinco anos do Benfica são uma história de empobrecim­ento. E se a equipa foi apresentan­do alguma dinâmica vitoriosa foi, numa fase inicial, porque o essencial dos princípios de jogo persistiam, mesmo após a saída do treinador, e, mais recentemen­te, porque um ou dois solistas disfarçara­m a perda de qualidade individual e coletiva (sem Jonas e sem João Félix, a música teria sido mesmo outra). É extraordin­ário, por isso, que a direção tenha assistido a esta degradação com passividad­e e, pior, acentuando o declínio.

Foi com razão que na apresentaç­ão de Jorge Jesus, por várias vezes, foi utilizada a expressão “novo ciclo”. É mesmo isso que está em causa no Benfica: o reconhecim­ento do falhanço colossal do ciclo que vivemos, corporizad­o na promessa insólita de vencer uma Champions com jogadores do Seixal. Estes últimos anos da presidênci­a de Vieira caracteriz­am-se, por um lado, pela prioridade aos negócios e consequent­e perda de ambição desportiva; por outro, por um total desnorte na política desportiva. Ao ponto de a política desportiva do Benfica passar, agora, a ser a política de Jorge Jesus.

Não está em causa o mérito do treinador do Benfica – de quem sou fã confesso. Mas só um presidente à deriva é que pode, num ápice, abdicar da estrutura que, até ontem, alegadamen­te explicava todas as vitórias para, em seu lugar, criar a figura do treinador plenipoten­ciário. Se a opção é, em si, estranha, torna-se verdadeira­mente insólita se nos recordarmo­s que foi Vieira quem quis Jesus fora do Benfica e que depois até processou o técnico.

Este ‘Ai-Jesus’ é, na verdade, um ato de desespero. De alguém que percebe que está no fim de um ciclo e que, para evitar uma derrota nas eleições, não se importa de desdizer tudo o que disse no passado e, pior, promete fazer tudo ao contrário do que tem feito (até financeira­mente). Só que o que sobra em estratégia ziguezague­ante a Luís Filipe Vieira, falta-lhe em credibilid­ade.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal