Hipocrisia tóxica
O ÓDIO INDUZIDO PELA RIVALIDADE TRIANGULAR – ENTRE PORTISTAS E BENFIQUISTAS E SPORTINGUISTAS E BENFIQUISTAS – JÁ EXISTIA ANTES DE A TELEVISÃO SE DEDICAR A ESTE MODO DE ENTRETENIMENTO DAS MASSAS
çA ideia de que os debates televisivos sobre o futebol são uma espécie de fonte do mal tem a sua piada. Não acompanho estes debates sobre o penálti que ficou por marcar. Em primeiro lugar porque, na minha modesta opinião, o futebol tem hoje um grave problema de verdade desportiva, que resulta da entrada em força da máfia das apostas nos relvados portugueses, bem como dos históricos esquemas de luta dos ‘grandes’ pela hegemonia dentro e fora do campo. Basta ver a quantidade de obscuros acionistas que pululam hoje pelas sociedades anónimas desportivas, da Liga profissional aos Distritais. Basta ver o estado de implacável falência em que estão hoje centenas de clubes em Portugal. De resto, o ódio induzido pela rivalidade triangular, a tal toxicidade, entre portistas e benfiquistas e sportinguistas e benfiquistas já existia antes de a televisão se dedicar a este modo de entretimento das massas. Pelo menos desde o século passado.
A piada desta tese está no facto de ela apresentar instrumentalmente os debates como uma explicação do mal do futebol e da sua influência nociva na sociedade, quando, afinal, ela pretende primordialmente revestir os seus autores de uma espé- cie de pureza originária, que os transforma nos pastores angelicais de uma nova verdade, transformando todos os que fi- cam nesse mundo sujo e tóxico como uma espécie de vampiros das emoções. No subtexto, eles não correm por audiências, eles são os senhores dos princípios, os outros chafurdam na lama. O esquema estratégico maniqueísta do costume, que só fun- ciona para o futebol e não para política ou economia, tratados com punhos de renda.
Neste debate é essencial perguntar, por exemplo, quem foram os criadores do clima de promiscuidade sistémica e tóxi- ca entre alguns dos portadores dessas boas-novas com o mundo da política? Quem são os organizadores das narcotizantes prédicas do ‘late night’ televisivo onde a política se discute sempre a partir do normativismo controlado do centrão polí- tico e económico e nunca dos seus elementos de iniludível crise?! Onde se diabolizam sistematicamente os atores e as instituições de pressão democrática sobre o sistema político, como as magistraturas, as polícias, os órgãos de fiscalização do Estado em geral, como se fossem eles os responsáveis pelo atraso do país. Quem foram, afinal, os acompanhantes do dr. Ricardo Salgado às missas de luxo anuais na Suíça e os beneficiários das suas avenças? Isso, sim, sempre foi tóxico e continuamos à espera de saber.
Reduzir a toxicidade perigosa da sociedade mediática nacional aos debates de futebol é, no mínimo, uma hipocrisia tóxica.