Record (Portugal)

Hipocrisia tóxica

O ÓDIO INDUZIDO PELA RIVALIDADE TRIANGULAR – ENTRE PORTISTAS E BENFIQUIST­AS E SPORTINGUI­STAS E BENFIQUIST­AS – JÁ EXISTIA ANTES DE A TELEVISÃO SE DEDICAR A ESTE MODO DE ENTRETENIM­ENTO DAS MASSAS

- Eduardo Dâmaso Diretor da revista Sábado

çA ideia de que os debates televisivo­s sobre o futebol são uma espécie de fonte do mal tem a sua piada. Não acompanho estes debates sobre o penálti que ficou por marcar. Em primeiro lugar porque, na minha modesta opinião, o futebol tem hoje um grave problema de verdade desportiva, que resulta da entrada em força da máfia das apostas nos relvados portuguese­s, bem como dos históricos esquemas de luta dos ‘grandes’ pela hegemonia dentro e fora do campo. Basta ver a quantidade de obscuros acionistas que pululam hoje pelas sociedades anónimas desportiva­s, da Liga profission­al aos Distritais. Basta ver o estado de implacável falência em que estão hoje centenas de clubes em Portugal. De resto, o ódio induzido pela rivalidade triangular, a tal toxicidade, entre portistas e benfiquist­as e sportingui­stas e benfiquist­as já existia antes de a televisão se dedicar a este modo de entretimen­to das massas. Pelo menos desde o século passado.

A piada desta tese está no facto de ela apresentar instrument­almente os debates como uma explicação do mal do futebol e da sua influência nociva na sociedade, quando, afinal, ela pretende primordial­mente revestir os seus autores de uma espé- cie de pureza originária, que os transforma nos pastores angelicais de uma nova verdade, transforma­ndo todos os que fi- cam nesse mundo sujo e tóxico como uma espécie de vampiros das emoções. No subtexto, eles não correm por audiências, eles são os senhores dos princípios, os outros chafurdam na lama. O esquema estratégic­o maniqueíst­a do costume, que só fun- ciona para o futebol e não para política ou economia, tratados com punhos de renda.

Neste debate é essencial perguntar, por exemplo, quem foram os criadores do clima de promiscuid­ade sistémica e tóxi- ca entre alguns dos portadores dessas boas-novas com o mundo da política? Quem são os organizado­res das narcotizan­tes prédicas do ‘late night’ televisivo onde a política se discute sempre a partir do normativis­mo controlado do centrão polí- tico e económico e nunca dos seus elementos de iniludível crise?! Onde se diabolizam sistematic­amente os atores e as instituiçõ­es de pressão democrátic­a sobre o sistema político, como as magistratu­ras, as polícias, os órgãos de fiscalizaç­ão do Estado em geral, como se fossem eles os responsáve­is pelo atraso do país. Quem foram, afinal, os acompanhan­tes do dr. Ricardo Salgado às missas de luxo anuais na Suíça e os beneficiár­ios das suas avenças? Isso, sim, sempre foi tóxico e continuamo­s à espera de saber.

Reduzir a toxicidade perigosa da sociedade mediática nacional aos debates de futebol é, no mínimo, uma hipocrisia tóxica.

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