Um cavalo selvagem para domar
DARWIN TEM TUDO PARA SE TORNAR MAIS HÁBIL EM ESPAÇOS CURTOS, DEPURAR A RELAÇÃO COM A BOLA E SER AINDA MAIS ÍNTIMO DO GOLO. SÓ SE O DESTINO SE DISTRAIR É QUE NÃO SERÁ, NUM FUTURO MAIS OU MENOS BREVE, UM DOS MELHORES AVANÇADOS DO MUNDO
çO futebol estimulou ao longo do último meio século tendência para a uniformização funcional dos jogadores, processo cujo início podemos situar no futebol total do Ajax do início dos anos 70. Porém, houve sempre vozes dissonantes, a mais eloquente das quais Alfredo di Stéfano, quando afirmou dominar todas as funções do meio-campo para a frente mas que, nas alas, tinha a certeza de que os extremos eram muito melhores do que ele. Bernard Shaw (1856-1950), nobel da literatura em 1925, escreveu: “O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos e, no fim, acabará por saber tudo sobre nada.” O genial romancista irlandês não pensava em futebol, muito menos em pontas-de-lança, quando formulou o pensamento. Para o caso, o problema é que o “nada” a que se refere é o ato mais difícil, valioso e aclamado do jogo: o golo.
Aos 22 anos, Darwin já definiu
um estilo, escolheu o tipo de intervenção e dedicou-se à tarefa de melhorar qualidades para atingir o máximo de si próprio. Fenómenos à parte, os avançados precisam de tempo para adquirirem a plenitude das capacidades e concluírem a imperiosa especialização a que estão obrigados. No Benfica, o uruguaio apresenta contabilidade respeitável: 52 jogos, 20 golos e 11 assistências. É um projeto incompleto assente em debilidades que só a experiência lhe permitirá ultrapassar e tem resistido com orgulho intacto a esta fase de indefinição e dúvida, traduzida no desfasamento entre o que vale hoje e a expressão grandiosa que projeta para o futuro. Já o vimos condicionado por brumas de desencanto, mas também já lhe detetámos o entusiasmo juvenil com o qual pretende conquistar o Mundo. Enquanto não aprende tudo, continua a provocar a vertigem do deslumbramento, fruto de uma intervenção temerária, corajosa e empolgante, que motiva os seus e intimida os adversários.
Darwin é um extraordinário
avançado em construção. Anali- sá-lo só em função do que faz agora, sem considerar a margem imensa que possui para ser melhor, remete-nos para uma frase de José Saramago: “Cegueira também é viver num Mundo sem esperança.” As limitações técnicas e de entendimento do jogo travam a expressão máxima do que vai ser amanhã, mas nada disso pode ser dissociado da fonte inesgotável de energia que deposita na ação, com a teimosa expressão de um talento explosivo; que ataca a profundidade sem salamaleques e promove aventuras muitas vezes ingénuas, que o identificam como animal feroz que escapa à clausura da área e se dedica a tomar decisões heroicas, como se tivesse sido mordido por um rancor que o enfurece contra todo o planeta.
Darwin navega entre os movimentos amplos no espaço ofensivo, com dinâmica e intensidade tremendas, e as soluções constantes que oferece às necessidades de quem joga nas suas costas. Mas a dinâmica e a intensidade reveladas nem sempre o beneficiam – por vezes é como se chapinhasse na água antes de pescar, sem entender que, assim, em vez de chamar os peixes os afugenta.
O passo seguinte é adquirir precisão nos gestos, tornar-se mais hábil em espaços curtos, depurar a relação com a bola, tornar-se ainda mais íntimo do golo e aper- feiçoar a clareza das intenções quando se propõe combinar com os companheiros. A construção do puzzle terá efeitos na moderação dos impulsos revelados pela fúria de viver, jogar e ser útil. Darwin terá de ouvir Jorge Jesus para ver domado o espírito de cavalo selvagem que é e se tornar um ponta-de-lança mais refinado e eficaz. Prova de que apesar das tendências de sentido contrário, há funções que promovem imperiosa necessidade de especialização. Só se o destino se distrair é que não será, num futuro mais ou menos breve, um dos melhores avançados do Mundo.
ENQUANTO NÃO APRENDE TUDO, CONTINUA A PROVOCAR A VERTIGEM DO DESLUMBRAMENTO