Ele ’só’ joga futebol como os deuses
POR TEMPERAMENTO E OPÇÃO PESSOAL, BERNARDO SILVA VIVE COMO DISSIDENTE HISTÓRICO DE UM TEMPO QUE NÃO FAVORECE O SEU TALENTO SUBLIME QUE DESLUMBRA O MUNDO. TEMPO EM QUE É RARO OBTER CONSENSO REMANDO CONTRA A MARÉ
TODOS OS COMPANHEIROS SABEM QUE ENTREGAR-LHE A BOLA É COMO GUARDÁ-LA NUMA CAIXA-FORTE
No afã de individualizar sucesso e fracasso, o futebol globalizou-se ao ponto de ocupar as nossas vidas antes, durante e depois dos jogos. A Bernardo Silva interessa-lhe em exclusivo o que sucede em campo, como intransigente defensor de uma ideia segundo a qual a credibilidade é a recompensa por uma trajetória sem mácula do ponto de vista ético. BS articula a condição de herói com um modelo de intervenção irrepreensível e poucas coisas são tão dignas de ser admiradas como as condutas nobres em atividades de conflito. Os ídolos de massas devem saber que as boas ações são tão contagiosas quanto as imorais. Não falta quem aborde o futebol só para provocar ruído, ou seja, de um modo superficial. E há aqueles que o observam e interpretam como metáfora da vida, o que eleva a dimensão moral do fenómeno.
No centro das operações tem peso maior na produção da equi- pa, apesar da sumptuosidade criativa revelada nas zonas periféricas. Tem habilidade, coordenação, panorama, coragem, potência e generosidade em doses gigantescas, pelo que os companheiros sabem que entregar-lhe a bola é como guardá-la numa caixa-forte. Agora que os valores concretos adquirem prestígio muito para lá do razoável (quilómetros percorridos, duelos ganhos e perdidos, velocidade máxima, passes certos e errados, e demais estatísticas irrelevantes), BS é a caixa-negra do futebol. No meio, onde Fernando Santos o colocou para dirigir o futebol da Seleção Nacional, é-lhe mais fácil exercer influência, porque administra o jogo com perfeição e desenvolve a arte de esconder a bola dos adversários e distribui-la sempre com critério.
Mas para lá de alimentar o senso comum, BS também corre riscos, porque tem visão ampla, descobre espaços vazios num abrir e fechar de olhos e domina a matéria-prima da finta: domínio, utilização correta da velocidade e finta com saída para os terrenos mais delicados para o adversário. O tempo de passe é incrível e a forma como solta a bola é deliciosa, cravando punhais nas costas da defesa contrária, o que, na pior das hipóteses, serve para minar o espírito de quem sofre e despertar o ânimo de quem procura o golo. BS serve, afinal, agora mais do que quando jogava nos flancos, para melhorar o jogo da Seleção. Por reconhecer que não é autossuficiente, trata de motivar os outros a segui-lo e a dar-lhe linhas de passe, para que, todos juntos, descubram o caminho.
Acrescenta ainda a esse tremendo arsenal de argumentos
que o catalogam como génio com a bola nos pés, o exemplo de solidariedade com a equipa, a entrega ilimitada a tarefas menos artísticas, à atitude altruísta, ao correto posicionamento defensivo, à total disponibilidade física, obedecendo sempre à virtude de que o futebol não abdica para fazer todo o sentido: a inteligência.
BS sabe distinguir as obrigações mediáticas perante os adeptos da supérflua presença nos palcos cor-de-rosa da vida; privilegia a essência da profissão (camisola, bola, treino, jogo…) em relação aos interesses do negócio que florescem à volta (marketing, publicidade, imagem…). A opção é pouco vulgar em plena ditadura económico-financeira, na qual vigoram regras que debi- litam a força misteriosa do balneário e a coesão do grupo como família. BS tem incorporado o orgulho de ser futebolista, desenvolveu o sentido de representação do meio em que está inserido e diviniza a verdadeira essência do significado de ganhar. Por temperamento e opção pessoal vive como dissidente histórico de um tempo que não favorece o talento sublime que deslumbra o Mundo. O tempo em que é muito raro obter o consenso remando contra a maré, mesmo para quem, como ele, joga futebol como os deuses.