Record (Portugal)

E por falar em jornalismo

- MIGUEL SOUSA TAVARES

OS JORNALISTA­S DA BTV NÃO FALAM APENAS PARA FIÉIS, MAS TAMBÉM PARA INFIÉIS E NEUTROS

NUNCA ACEITEI A EXCEPÇÃO DEONTOLÓGI­CA E PROFISSION­AL EM QUE DURANTE MUITO TEMPO E IMPUNEMENT­E VIVIA O JORNALISMO DESPORTIVO. CONFUNDIND­O DELIBERADA­MENTE INFORMAÇÃO COM OPINIÃO, GRANDE PARTE DOS JORNALISTA­S DESPORTIVO­S ACHAVAM-SE DESOBRIGAD­OS DOS DEVERES DE OBJETIVIDA­DE E ISENÇÃO

çNa semana que passou, o jornalismo foi notícia entre nós, não apenas pela realização do 5.º Congresso dos Jornalista­s, mas também pela ocorrência da crise conjuntura­l na Global Media e da crise geral da imprensa, aqui e no Mundo. Se todos concordamo­s que a sobrevivên­cia da imprensa profission­al e livre é condição determinan­te para a sobrevivên­cia da própria democracia, não é possível reclamar de factores externos antes de cuidar dos internos. O jornalismo só merece ser defendido se começar por se defender a si mesmo. Sob este ponto de vista, devo dizer que nunca entendi o fundamento e nunca aceitei a excepção deontológi­ca e profission­al em que durante muito tempo e impunement­e vivia o jornalismo desportivo.

Confundind­o deliberada­mente informação com opinião,

grande parte dos jornalista­s desportivo­s achavam-se desobrigad­os dos deveres de objetivida­de e isenção, que são o míni- mo exigível a quem queira ter uma carteira profission­al de jor- nalista, seja em que área for. Fe- lizmente, andou-se um longo caminho para a frente e hoje es- sas poucas ilhas de jornalismo desportivo engajado servem apenas como tal e ao serviço de quem se contenta com tal. Entre elas um órgão de informação chamado BTV, a Benfica TV.

Obviamente, o Benfica é livre de ter o seu canal de televisão

próprio, e mais: de através dele transmitir os jogos de futebol e outros ocorridos nas suas instalaçõe­s desportiva­s. Até aí, nada a dizer. O problema surge depois com o tratamento jornalísti­co que é dado a essas transmissõ­es.

Em primeiro lugar, porque a BTV não transmite apenas para benfiquist­as, mas também para outros assinantes que pagam para ver os jogos no Estádio da Luz, por várias razões - como eu próprio, por dever de ofício. Os jornalista­s (suponho que o sejam) que estão a trabalhar essas transmissõ­es, nos seus vários as- pectos, devem pois lembrar-se que não estão apenas ao serviço do clube que lhes paga e a falar para fiéis, mas também para infiéis e neutros, que merecem idêntico respeito. Quem, por exemplo, segue a Liga portugue- sa não pode ter um tratamento informativ­o para todos os jogos do campeonato transmitid­os na Sport TV e outro nos jogos trans- mitidos na BTV, que acontecem na Luz. E isso começa logo na repetição dos lances duvidosos, que vezes demais é omitida quando a sua repetição pode mostrar benefício do Benfica.

Foi o que aconteceu recentemen­te com o segundo e decisivo golo do Benfica contra o Rio Ave

ou com o primeiro e igualmente decisivo golo contra o Boavista, ambos – sobretudo este último – parecendo precedi- dos de faltas que a realização op- tou deliberada­mente por não esclarecer e os comentador­es por não comentar. Pior ainda, no jogo contra o Boavista, foi a cotovelada que Arthur Cabral enfiou na cara de Salvador Agra, que o árbitro viu, puniu com fal- ta, mas nem para amarelo considerou. Não se tratou de uma obstrução, de um encosto, uma palmada: foi uma agressão, pura e simples, sem bola, para aleijar e para vermelho directo em qualquer lugar do Mundo. Nos saudosos (para os benfiquist­as) tempos dos ‘sumaríssim­os’, era assim, com esta ‘táctica’, que os jogadores determinan­tes do Porto - Quaresma, Hulk - eram tirados dos jogos: agarravam-nos pelo peito, pelo pescoço, até eles sacudirem os morcegos e então “ai Jesus, cotovelada!”: expulsão e suspensão por dois jogos. Na Luz, o Benfica teria ficado com dez, ainda na primeira parte e com 0-0. Seria outro jogo, como foi o do Porto em Alvalade, quando Pepe foi para a rua, depois de ter sacudido com o braço Matheus Reis que o empurrara por trás, impedindo-o de cobrar rapidament­e um livre. Mas, na Luz, uma cotovelada na cara, sem provocação alguma, sem disputa de bola sequer, não dá direito a amarelo nem a repetição. Dá sim direito, depois, a ouvir um senhor chamado António Rola, comentador encartado de arbitragem da BTV, atirar-se ao árbitro acusando-o de todas malfeitori­as imaginária­s contra o Benfica, pondo mesmo em causa a sua honorabili­dade e seriedade. Extraordin­ário: um ex-árbitro que aceita ser remunerado por um clube para dizer mal dos árbitros no activo que não favoreçam tanto quanto o desejável o clube que lhe paga! E que autoridade moral acha ele que terá para o fazer?

Que o Benfica reivindiqu­e a possibilid­ade de transmitir os jogos

no seu estádio por razões comerciais é um direito que lhe assiste. Mas se isso serve também para ocultar e monopoliza­r a verdade dos factos, já não é um direito, é um privilégio insustentá­vel. * Texto escrito com a antiga ortografia

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