Já começou a grande invasão
O regime de Orban injeta dinheiro em clubes dos países vizinhos com vastas comunidades magiares. Como que a refazer o Império Austro-Húngaro
INVESTIMENTO NO FUTEBOL PERMITE A EMPRESAS E TAMBÉM A OLIGARCAS ‘FINTAR’ OS IMPOSTOS
OS AMIGOS E LACAIOS DE ORBAN SÃO ESTRATEGICAMENTE COLOCADOS NO PANORAMA DO FUTEBOL HÚNGARO
Com a sua estrela a brilhar no panorama político húngaro, Orban gravitou mais e mais para a direita e, entre 1998 e 2002, cumpriu o primeiro mandato como primeiro-ministro. Por esta altura, porém, já ia disputar as suas partidas de futebol com escolta. Desde a reeleição de Orban, em 2010, o futebol tem sido usado como uma arma de propaganda e de recompensa para leais seguidores do regime. Em Felcsút, a Pancho Arena – assim designada em homenagem à alcunha espanhola de Ferenc Puskás – foi construída em 2014. Felcsút é a cidade onde Orban cresceu e o seu ex-presidente da câmara, Lörinc Meszáros, um amigo de longa data do primeiro-ministro, viu a sua riqueza triplicar durante o atual regime. Os amigos e lacaios de Orban são colocados estrategicamente no panorama do futebol húngaro, com o Videoton (é assim que continua a ser mais conhecido) a ser detido pelo oligarca da construção civil István Garancsi. Já Sándor Csányi, homem mais rico do país, é presidente da federação magiar. E Tamás Deutsch, fundador do Fidesz, é o dono do MTK Budapeste.
Mas clubes menores e maiores, como o Ferencváros, tèm recebido novos recintos. O avultado investimento nasce de um novo esquema que permite a empresas e oligarcas aplicarem lucros em empreendimentos desportivos, sejam clubes ou eventos, evitando pagar impostos. Não surpreende que a Hungria gaste mais em futebol do que em professores ou médicos. Quase todos os clubes do primeiro escalão húngaro pertencem à rede de associados de Orban e os seus estádios são utilizados para grandes encontros entre políticos e oligarcas. A liga é transmitida pela MTVA, o canal estatal, que paga por esses direitos o dobro do que paga para transmitir encontros da Liga dos Campeões.
A exemplo do que acontece em regimes nacionalistas, a administração de Orban evoca o passado. No futebol magiar, tal é visível no ‘naming’ de estádios. Quase todos têm o nome de um dos Mágicos Magiares, como se isso elevasse o nível do futebol praticado. Em termos de política externa, as regiões dos países vizinhos onde existem minorias húngaras são bastante apoiadas e monitorizadas. A acompanhar este processo há sempre queixas acerca de um tratado assinado há mais de 100 anos – em 1918, foi acordado o cessar-fogo que resultou no fim do Império Austro-Húngaro. Dominado o futebol húngaro, Orban e o seu regime injetam dinheiro pago pelos contribuintes em clubes na Roménia, Eslováquia e Sérvia. O total do investimento é de entre 50 a 60 milhões de euros. Numa liga do top-5 europeu, isso compraria um extremo-esquerdo; no leste europeu, é suficiente para revitalizar um clube.
Invasão da Roménia
A Roménia é o país vizinho da Hungria que tem a mais vasta população magiar. Do milhão de húngaros que vive na Roménia, a maioria estão na zona de Székely, na Transilvânia. Ali encontram-se os dois clubes suportados por fundos húngaros, como o já mencionado Sepsi OSK e o FK Csíkszereda, localizados nas duas maiores cidades de Székely. Sepsi fica em Sfântu Gheorghe, cidade onde a maioria dos residentes se consideram húngaros. O clube foi fundado em 2011, uma vez que a cidade nunca antes teve uma equipa de futebol profissional. Por trás da sua fundação está László Diószegi, um magnata. A maioria das ações do clube, ou seja, 51%, é propriedade de Hodut Rom, uma subsidiária de uma ‘holding’ pertencente a Karoly Varga, um dos amigos de infância de Orban. Desde que o clube foi fundado, eles rapidamente subiram ao mais alto escalão romeno e estão agora prontos para perturbar os clubes estabelecidos no topo da liga. A chave para o seu sucesso rápido é o financiamento: cerca de 6,19 milhões de euros, que tem ido principalmente para a expansão das infraestruturas e instalações do clube, uma vez que o dinheiro não pode ser bombeado diretamente para os salários do plantel. O patrocínio húngaro vem do sector privado, com o OTP Bank e o gigante energético MOL. Este investimento não só assegurou que o clube tivesse instalações de padrão muito elevado, mas também a maior receita de patrocínio da liga romena. O velho estádio municipal recebeu uma renovação e em 2018 o clube ergueu o Sepsi OSK Arena. Em 2021 a nova arena albergou o seu primeiro jogo e o local onde foi construído é propriedade da mesma empresa liderada por Karoly Varga.
O segundo clube localizado na Roménia que recebe apoio húngaro é o FK Csíkszereda, também situado numa das cidades mais importantes da região, Miercurea Ciuc, que tem uma longa história de futebol. A situação financeira do clube não estava na melhor forma em meados da década de 2010, quando o presidente Zoltán Szondy escreveu ao regime húngaro pedindo fundos para uma academia de futebol. Desde então, cerca de 4 milhões de euros entraram no clube para centros de treino... e a Academia Csíkszereda tornou-se das me
NA ROMÉNIA, ORBAN APOIA O SEPSI, DE SFÂNTU GHEORGHE, CIDADE ONDE A MAIORIA SE DIZ HÚNGARA
lhores na Roménia. Os adeptos e ultras destes dois clubes são maioritariamente húngaros e há tensões com adeptos de clubes adversários. Há bandeiras da Hungria e da zona de Székely a serem exibidas, o que era tabu na Roménia. Os elementos visuais são apoiados por canções nacionalistas e Orban regozija-se nesta tensão étnica, apoiando ambas as equipas. Os clubes mais antigos e mais bem sucedidos da Roménia estão claramente em acentuado declínio e o Sepsi encontra-se agora perto de ganhar o seu primeiro título de campeão, o que iria causar ainda maior escrutínio em relação ao seu apoio e intenções.
Tensão e KKK na Eslováquia
No sul da Eslováquia, os húngaros são a mais expressiva minoria étnica: 45.0000 pessoas. Nos distritos de Komarno e Dunajská Streda encontramos os dois clubes apoiados por Budapeste. O primeiro é o FC DAC Dunajská Streda, um ‘clube iô-iô’ nos anos 1990, agora a caminho de ser candidato ao título. A figura-chave aqui é Oszkár Világi, vice-CEO da empresa húngara de petróleo e energia MOL e da sua subsidiária na Eslováquia. Világi é outro companheiro de Orban, embora afirme que ele e o seu clube são apolíticos. Mesmo assim, o clube recebeu mais de 7,42 milhões de euros do governo húngaro e construiu um novo estádio e uma nova academia, dirigida pela filha de Világi desde 2018 e tem solicitado continuamente fundos ao regime húngaro.
Tal como na Roménia, as tensões étnicas entre os adeptos deste clube e os adeptos do resto da liga aumentaram. Em 2008, a polícia interveio entre os fãs do Slovan Bratislava e do DAC, que aumentou a sua retórica nacionalista. As bandeiras húngaras são um pilar das arquibancadas, assim como o hino nacional húngaro, tocado antes de cada jogo. Tal como na Roménia, há uma equipa do segundo escalão que não recebeu tantos fundos como o DAC. É o KFC Komarno, que os seus adeptos abreviam para... KKK. Em 2014, o candidato a presidente do partido húngaro local pediu ajuda a Orban, mas com foco educacional, como a construção de escolas. Foram doados 5,57 milhões de euros…, mas para o clube e para a reconstrução do estádio.
A Sérvia amiga
Para o último clube desta lista, precisamos ir à Sérvia, na região de Voijvodina, onde vive a maioria dos mais de 180.000 membros de etnia húngara. A situação aqui é muito diferente da verificada na Roménia e na Eslováquia. A Sérvia é o único vizinho da Hungria que assinou um acordo de cooperação. Enquanto o resto das nações vizinhas olham para a Hungria como um estado pária devido à sua retórica de direita, revisionista e pró-Rússia, a Sérvia tem melhorado as relações com o seu vizinho do norte. Ambos os países têm opiniões semelhantes sobre imigração, direitos LGBTQ, religião e desejam manter os seus povos tão ‘puros’ quanto possível.
Era natural que estes dois estados anti-europeus e contra-progressistas se alinhassem. Portanto, a energia e a atmosfera que rodeiam o clube local TSC Backa Topola são opostas às da Roménia e da Eslováquia. O TSC existe desde 1913 e sempre teve uma forte base de adeptos húngaros, mas passou a maior parte do tempo nas ligas inferiores. Subiram na classificação do futebol sérvio até ao segundo lugar, na época passada. Durante este período, foram gastos cerca de 14 milhões de euros no clube, visto como fonte de diversidade numa liga que é um duopólio formado entre o Partizan e o Estrela Vermelha. János Zsemberi, multimilionário local, atuou como presidente e patrocinador do clube e agora é chefe da academia. Orban está sempre presente, abrindo dormitórios nas academias e inaugurando novos estádios. A questão principal permanece: por que é que centenas de milhões dos contribuintes húngaros são gastos no futebol, na maioria das vezes em projetos fora do país? Porque o futebol torna-se uma nova forma de conquista. Embora não possa invadir o seu vizinho para retomar as suas terras, pode usar o desporto para projetar o seu poder nesses países. Imagine um cenário em que as ligas eslovaca, romena e sérvia tenham campeões húngaros. Não é a vitória no campo de batalha com a qual muitos nacionalistas sonham, mas seria o mais próximo possível. Além da projeção do poder e das ilusões de grandeza de Orban, estes investimentos são a forma moderna mais básica de pão e jogos. Estes muitos pães distribuídos pela administração húngara garantem que os eleitores húngaros no estrangeiro saibam em quem votar. Desde 2010, a Hungria tem garantido dupla cidadania para a sua diáspora, com graus variados de sucesso. Na Roménia, a questão não foi considerada prejudicial para o estado romeno, enquanto na Eslováquia foi anunciado que qualquer cidadão que solicitasse a cidadania húngara seria privado da sua cidadania eslovaca. Em 2014, o regime anunciou que os húngaros no estrangeiro poderiam votar.
À medida que o futebol se fortalece como ferramenta de marketing e é cada vez mais utilizado como instrumento político, a Hungria está na vanguarda desta nova era. Mas, como sempre, as tensões étnicas e a xenofobia são atiçadas por esta abordagem, continuando a criar uma imagem mais suja e sórdida do futebol moderno.