A nostalgia de um adeus anunciado
RAFA CONTINUARÁ A SER RAFA, O BENFICA NÃO DEIXARÁ DE SER BENFICA. MAS TODOS TERÃO DIREITO À DOR NA DESPEDIDA. ATÉ OS ADVERSÁRIOS, QUE DORMIRÃO MAIS TRANQUILOS COM ELE LONGE, MESMO SABENDO QUE OS SEUS DESAFIOS SERÃO MUITO MAIS POBRES
çNão tem tempo nem feitio para burocracias; as lengalengas sem sentido não são para ele, antes prefere ir direto ao assunto, sem rodeios; o tempo, que o aproximou da maturidade e do estatuto correspondente ao talento, elevou os níveis de compromisso com as causas que defende, com as regras da profissão que abraçou e com a dimensão do que representa no futebol português e, mais ainda, no Benfica. Rafa demorou a desfazer-se do número que trazia colado à pele quando entrou na Luz: eram 16 milhões de euros às costas, fardo insuportável para qualquer ser humano, mais ainda para quem nunca ambicionou ser fenómeno mediático. Pelo modo distante de ver as coisas, fugiu sempre aos holofotes da fama e reclamou o direito a viver no seu canto, convicto de que, apesar de ser figura pública, ninguém tem a ver com o seu conceito de felicidade.
Teve então de lutar com a falta de empatia no primeiro impacto com a imensa nação encarnada, num clube com dimensão desportiva e social gigantesca, no qual é difícil, quase impossível, ser ídolo de companheiros, símbolo de adeptos e craque universal agindo com a indiferença de homem estrito, indiferente e frio. Ou mesmo como profissional cumpridor e responsável, mas distante das raízes emocionais de um clube vocacionado para valorizar os sentimentos agregados à grandiosa história simbolizada pela águia que traz ao peito.
Rafa foi sempre uma peça solta na engrenagem, mas tão importante para o funcionamento da máquina que nenhum dos cinco treinadores em oito anos de Luz (Rui Vitória, Bruno Lage, Nélson Veríssimo, Jorge Jesus e Roger Schmidt) ousou beliscar. Foi em todas as circunstâncias o mais extraordinário desequilibrdor do futebol encarnado – um desperdício, do qual não teve toda a responsabilidade, ter falhado essa influência na Seleção Nacional. De baixa estatura (1,72m), tudo o que faz está associado a sensações explosivas; à perfeita gestão da velocidade (travagem, arranque, aceleração, mudança de direção); à eletricidade de movimentos e ações com bola; ao estilo supersónico de um futebol vertiginoso, vertical, desenvolvido em constantes associações ou em epopeias individuais capazes de fazerem estádios inteiros ir pelos ares.
Só com o passar dos anos se tornou consensual no seio da família benfiquista. A estatística também joga a favor dele. Errando muitas vezes nos diálogos com os guarda-redes, 85 golos é número impressionante para um não-especialista. Também aproveitou para se moldar às circunstâncias e tornar-se figura proeminente de uma grande instituição nacional e europeia: adaptou o comportamento às obrigações como elemento do espetáculo e entendeu que, em campo, representa milhares de almas, cuja felicidade depende do esforço (obrigatório) para defender a bandeira, mas também do talento (mais volátil) para atingir a expressão máxima do que tem para oferecer.
O longo caminho percorrido até aqui (e ainda só tem 30 anos) foi sinuoso, sofrido mas conheceu a excelência. Rafa é a figura maior de um tempo na lenda benfiquista. É quase uma década como protagonista de história iluminada pelo seu génio futebolístico; pelas suas birras, proezas e debilidades; pela distância que arrefe- ceu momentos quentes e a menor empatia que não beliscou o fervor da paixão que, afinal, o povo sempre lhe dedicou. Anunciou que vai partir. Fez bem em dizê-lo porque permite despedir-nos com antecipada nostalgia do seu futebol único. Ele continuará a ser Rafa, o Benfica não deixará de ser Benfica. Mas todos terão direito à dor no adeus anunciado. Incluindo os adversários, que dormirão mais tranquilos com ele longe, sabendo de fonte segura que os seus desafios serão muito mais pobres.
COM O PASSAR DOS ANOS TORNOU-SE CONSENSUAL NO SEIO DA FAMÍLIA BENFIQUISTA