Record (Portugal)

“MAIS NINGUÉM PODERIA CONTAR ESTA HISTÓRIA ”

Já está em exibição na HBO Portugal a série documental ‘A Filha de Deus’. Antes da estreia, Record falou com a própria... a pessoa para quem Diego Maradona era, acima de tudo, pai e que mostra ‘El Pibe’ como nunca antes

- VASCO BORGES

Escolheu o título ‘A Filha de Deus’ para a série. Ter Diego Armando Maradona como pai é um estatuto que pesa?

DALMA MARADONA - Na verdade, escolhemos este título como uma completa ironia. E posso explicar. Porque, para mim, Diego Maradona é simplesmen­te... o meu pai. Está muito longe de ser um deus. Escolhemos este título porque as pessoas lhes colocaram esse apelido, esse estatuto, mas ele dizia sempre: ‘Eu não sou Deus, nem nada que se pareça’. Quisemos marcar essa ironia logo de início, porque um dos objetivos do documentár­io é precisamen­te explicar porque é que, para mim, o meu pai não é Deus.

Ⓡ Há dezenas de documentár­ios, filmes e histórias que já foram contadas sobre Maradona. Quão importante é para si contar a sua parte?

DM - Tenho a noção de que há imensas coisas sobre Maradona. Quando me desafiaram a seguir para frente com o documentár­io, sabia disso. Sabia que parece que tudo o que há para contar sobre Maradona já foi contado. Toda a gente sabe tudo e mais alguma coisa sobre a sua carreira futebolíst­ica, há dezenas de coisas que já foram repetidas. Mas sinto que o ponto de vista que tenho do meu pai, é só meu.

Ⓡ Sente que a história que está a contar é única?

DM - Sim, a minha história com Maradona nunca foi contada. Este documentár­io é sobre a minha visão e não há mais ninguém no Mundo que tenha tido a mesma experiênci­a que eu. Mais ninguém pode contar esta história. A base foi um trabalho que já tinha feito com o mesmo título. E percorremo­s tudo. Desde Villa Fiorito, que foi o bairro onde ele nasceu e foi criado em Buenos Aires e onde deu os primeiros pontapés na bola, passando por Itália, por Nápoles, que foi uma cidade muito significat­iva para a carreira e para a vida do meu pai.

Ⓡ Além da sua visão, também fez questão de entrevista­r muitas pessoas que se cruzaram com Maradona...

DM - Quis falar com as pessoas que o conheceram realmente. Que passaram pela vida dele e que podiam dar um testemunho de amor absoluto. Essa parte foi muito boa. Passei tanto tempo com essa gente que conheceu o meu pai, ouvi os seus testemunho­s, muitas coisas que não sabia. Gostei imenso de todas as conversas, todas me dizem imenso. Foi um processo emotivo e, ao mesmo tempo, muito bonito para mim.

De todas as pessoas com quem falou, o que mais gostou de ouvir sobre Diego Maradona?

DALMA MARADONA - É uma pergunta difícil... Houve uma que foi especial. Com a Esther, a pessoa que apresentou o meu pai à minha mãe. Ela nunca tinha falado publicamen­te sobre Maradona. Aliás, foi muito complicado convencê-la a participar, porque é muito envergonha­da e não queria nada aparecer. Mas falou sobre o meu pai de uma maneira tão doce e tão amorosa. De tal forma que, quando o documentár­io saiu na Argentina [outubro de 2023] a Esther tornou-se um fenómeno. Havia imensos comentário­s a dizer: 'Quem me dera tomar um mate com ela' e coisas do género. Foi um autêntico 'boom' em torno daquela conversa.

Ⓡ Fez questão de ir a Itália...

DM - As pessoas de Nápoles... ver aquele amor incondicio­nal pelo meu pai. Falámos com um fotógrafo que acompanhou toda a carreira dele no Nápoles e tem imagens que são realmente únicas. Disse que o meu pai lhe mudou a vida, porque foi por causa dele que se tornou um fotógrafo profission­al. Quando chegou ao Nápoles disse-lhe: 'Segue-me para todo o lado e podes tirar as fotografia­s que quiseres.' E saíram trabalhos incríveis.

Ⓡ Também falou com algumas personalid­ades do futebol?

DM - Sim. Também queria muito falar com Carlos Tévez, porque é uma pessoa que o pai prezava muito e sentia que tinha muitos pontos em comum com ele. Falei com o Bruno Giordano, que jogou com ele no Nápoles, e com quem partilhou muitas histórias.

Ⓡ Alguma história que possa revelar de antemão?

DM - Vou deixar para que vejam no documentár­io, mas posso destacar, por exemplo, o Guillermo Coppola, que foi empresário dele durante muitos anos e amigo durante tantos outros. Acho que é dele a história mais bonita, que reflete o meu pai tal como ele era.

Ⓡ O que pretende mostrar ao Mundo com a série?

DM - O que eu quero mesmo mostrar é o meu ponto de vista, através de material verdadeira­mente inédito. Temos muitas coisas que foram gravadas em casa, pela minha mãe. É esse o nível de intimidade. A minha mãe nunca pensou que aqueles vídeos iam chegar a algum lado, eram daqueles filmes para a família ver. Mas é muito bonito ver Maradona no seu ambiente familiar, a brincar comigo e com a minha irmã. Mostra esse lado do quotidiano, da convivênci­a dentro de casa, dos bailes, da alegria, coisas que as outras pessoas nunca tinham visto. A ideia é mostrar a sua parte mais humana, partilhar a alegria que foi ter uma vida ao lado dele. A minha infância e a minha adolescênc­ia foram fantástica­s, tive uma vida muito bonita com ele. Fico feliz por poder partilhá-lo.

“TIVE UMA INFÂNCIA MUITO BONITA COM O MEU PAI. QUERO PARTILHAR A ALEGRIA QUE FOI TER UMA VIDA AO LADO DELE”

Ⓡ Nápoles é marcante na vida e no legado de Maradona. Qual é a sua relação com a cidade?

DM - Amo ir a Nápoles. Sempre que saio do avião e ponho um pé na cidade é como se todo esse amor que sentem pelo pai me atingisse. É inexplicáv­el. Na Argentina, há um certo fanatismo... mas em Nápoles é diferente. É mesmo difícil de explicar. As pessoas encontram-me, a mim que não fiz nada, e choram... só por ser filha de Maradona. Dizem-me: 'Isto não é sobre futebol. Ninguém dava nada por esta cidade e Maradona veio para cá e tornou-se um de nós.' É um sentimento que persiste até hoje. Ver crianças pequenas, que nunca o viram a jogar, a pintar murais dele, com camisolas de Maradona. São histórias que lhes são passadas pelos avós e pelos pais. É uma loucura.

Ⓡ Há algum episódio relacionad­o com a cidade que a tenha marcado particular­mente durante as filmagens?

DM - Falámos com um homem que era um dos chefes da claque do Nápoles. Contaram-me que quando ele chegou havia muita expetativa e começaram logo a fazer imenso merchandis­ing e coisas relacionad­as com ele. Foram avisar o meu pai: 'Olha, estão a vender coisas com a tua imagem. Queres que façamos algo? Podemos tirar as coisas do mercado.' E que ele disse logo: ‘Nem pensar! Se a minha imagens lhe está a dar trabalho [rendimento­s], que continuem. Podem fazer o que quiserem.’ É por

“QUANDO VOU A NÁPOLES, HÁ PESSOAS QUE COMEÇAM A CHORAR QUANDO SABEM QUE SOU FILHA DE MARADONA”

coisas como esta que ele ficou tão marcado no coração das pessoas daquela cidade. Não tem só a ver com futebol, com o facto de ter ganho a Serie A [em 1987 e 1990], tem a ver com o que Maradona representa e deu às pessoas daquela cidade.

Ⓡ Mais que um grande futebolist­a, é um herói a nível social.

DM - Sim. Foi um encaixe perfeito, também porque há muitas semelhança­s entre os napolitano­s e os argentinos. Era visto como um deles. Naquela altura, era como se Nápoles nem fosse considerad­o parte de Itália. Mas Maradona fez com que conseguiss­em enfrentar as equipas mais poderosas, o Inter, o Milan, a Juventus. E ao enfrentá-los de igual para igual, ao ganhar-lhes, levou o clube à glória e deixou a cidade no mapa. Era o futebol como uma representa­ção social.

Ⓡ Era uma criança quando Maradona jogou no Nápoles, mas não deixa de ser uma cidade especial para si. O que leva de lá?

DM- Bem... sei que aprendi a falar italiano na perfeição e ainda hoje as pessoas não sabem muito como. Como é que, aos três anos, aprendi assim o idioma. Lembro-me da loucura das pessoas. Eu estava em casa e via um monte de pessoas amontoadas no pátio em frente. Eu vinha à varanda e gritava que o meu pai não estava, que tinha ido treinar. Literalmen­te, a dizer que se fossem embora de minha casa. Agora imagina uma 'pulga' de três anos a mandar um monte de gente embora, porque o meu pai não estava. Não queria partilhar o meu pai com ninguém. Acho que, a certa altura, eles já sabiam muito bem que Maradona não estava, mas iam lá pela piada da coisa.

Ⓡ Não devia ser fácil sair de casa com ele...

DM - Lembro-me que, quando saía de casa com alguém, diziam para me chamarem 'Francesca' [um nome mais comum em Itália do que Dalma] para que não me reconheces­sem. E eu era um bebé de dois ou três anos. Entendo que as pessoas fossem fanáticas pelo meu pai... mas por uma criança. O amor que tinham por ele, também se alastrava à minha irmã. E eu acho isso muito bonito. Como disse, éramos mais uma família de napolitano­s.

Ⓡ Como era lidar com isso, de ter toda a gente de olhos postos no seu pai e em tudo o que ele fazia?

DM - Ele costumava resmungar comigo... dizia que toda a gente sabia tudo sobre a carreia dele e eu não sabia nada. Só comecei a prestar realmente atenção depois de muito tempo. A saber de histórias que, se calhar, quando era ele que me as contava nem me interessav­a muito. Tentava contar-me sobre um golo que marcou e eu não queria saber. Dizia-me: 'São todos fanáticos por mim, menos a minha filha'. [risos]. Agora é diferente, quero saber todas as histórias. *

“QUANDO SAÍA CHAMAVAM-ME ‘FRANCESCA’ [UM NOME MAIS COMUM EM ITÁLIA] PARA QUE NÃO ME RECONHECES­SEM”

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