Rei Artur, muito mais do que um treinador
NÃO FOI SÓ BRILHANTE NO FUTEBOL. TINHA UMA INVULGAR SENSIBILIDADE SOCIAL, VISÃO DOS DIREITOS, DA POLÍTICA E DA CULTURA. É UMA REFERÊNCIA DE COIMBRA, DO SÓLIDO REDUTO DA RESISTÊNCIA AO REGIME QUE NOS GOVERNOU ATÉ AO 25 DE ABRIL
Cheguei a Coimbra 15 anos depois da grande Académica de Artur Jorge, dos finais da década de 60, e de alguns outros ídolos do futebol conimbricense. A cidade ainda sonhava com o futebol perfumado daquela equipa recheada de estudantes, cujo futebol pedia meças aos grandes da época, que eram os mesmos de hoje. Uns frequentavam Direito, outros Medicina ou algumas das engenharias, eram a argamassa de uma identidade que fazia da Académica qualquer coisa de muitíssimo diferente no mundo do futebol.
Para um recém-chegado que não andasse muito actualizado sobre o mundo da bola, rapidamente nomes como os de Vítor Campos, Mário Campos, Rocha, Manuel António, Belo, Gervásio, Rui Rodrigues, Artur, o saudoso ruço que conquistou as alas na Luz e em Alvalade, se tornavam familiares.
Artur Jorge andava pelas Letras, pelo mundo dos grandes clássicos do ensino coimbrão, como Paulo Quintela ou Maria Helena Rocha Pereira, já a rom- per o caminho para uma grande carreira no mundo do futebol. O seu mundo era vivido en- tre as rivalidades goleadoras com Eusébio, Yazalde ou Lemos e livros que o transportavam para o rigor estilístico da literatura inglesa e germânica, ou para a poesia de clássicos gregos e romanos.
O nome de Artur Jorge era ain da uma referência corrente noutros meios, sobretudo estu- dantis e políticos. A sua passagem pela República Ninho dos Matulões, um sólido reduto da resistência ao regime, onde foi contemporâneo de jornalistas como Albino Ribeiro Cardoso, David Lopes Ramos, já falecidos, e Eugénio Alves, que tiveram uma influência significati- va na formação cultural e política de Artur Jorge, era muito recordada pelas novas gerações. Estas, já o conheciam como treinador do grande FCPorto da final de Viena, contra o Bayern de Munique, mas ele era muito mais do que isso.
Esses anos de adolescente, de jovem estudante, dão-lhe uma forte consciência política e uma sólida bagagem cultural que o transformam numa personalidade única no futebol português. Artur Jorge foi pioneiro na exigência e na luta pela dignida- de laboral dos futebolistas, o que o levou a ser um dos fundadores do Sindicato dos Jogadores e a ter toda a vida uma invulgar sensibilidade social. Tinha uma visão dos direitos, da política, da cultura, que o colocou na esfera da esquerda moderada e que re cebeu da efervescência dessa fascinante Coimbra que conduziu à crise académica de 1969.
Nesses anos 80, portanto, o Rei Artur coroado nessa noite fabulosa do grande FCPorto em Viena, com a artilharia do inolvidável Madjer, de Juary e a arte de Futre a abrirem caminho, já era muito mais do que um treinador. Ou do que o fantástico jogador que tinha sido. Já era o grande senhor que ficou para a posteridade e perante ele me curvo num respeitoso adeus.