Defender também é uma arte
ANTÓNIO SILVA TEM A OBRIGAÇÃO DE REAGIR A DESASTRES DUROS COMO OS DO DRAGÃO E INTERIORIZAR QUE O CONFORTO JÁ OBTIDO NA CARREIRA SÓ SERVE PARA CONSOLIDAR A EXCELÊNCIA. JAMAIS COMO SINAL MENTIROSO DE UMA PLENITUDE PREMATURA
É UM JOVEM COM ARMAS REFINADAS E QUALIDADE IMENSA EM TERMOS TÁTICOS, TÉCNICOS E FÍSICOS
Numa função em que a idade contribui para dimensionar a qualidade global e esclarece que o processo de construção será concluído com tempo, António Silva é exceção à regra. Junto às áreas, onde o futebol requer elevadas doses de saber, precisão e responsabilidade só ao alcance de homens maduros, o jovem benfiquista (20 anos) não é afetado pela imperiosa necessidade de qualidades que, de um modo geral, estão interditas a adolescentes. Agora que é mais fácil reconhecer talento e encontrar beleza na dança daqueles que se expressam sem bola, é um caso sério. Antes de naufragar no Dragão, afundando-se como toda a equipa, confirmou em Alvalade a candidatura definitiva ao lote restrito dos maiores talentos defensivos do futebol atual.
No dérbi foi deslumbrante e surpreendente vê-lo fazer o que ainda ninguém tinha conseguido: parar Viktor Gyökeres, anulá- -lo em sucessivos duelos individuais, diminuir o impacto da mais devastadora máquina de guerra do exército leonino e desarmá-lo em permanência com sublime limpeza de processos. Mesmo nos deslocamentos em mar aberto foi imperial a gerir posição, a controlar distâncias e a encontrar tempo de intervenção na abordagem ao invasor; notável como foi encurralando o sueco até ficar com a bola, fechando-lhe a porta na cara com a veemência de quem está a ser assaltado em sua própria casa. Uma li- ção importante para o parceiro do lado, o consagrado Otamendi que, nesse mesmo jogo, somou falhas comprometedoras, algumas das quais primárias.
É impressionante como tem resposta para todas as situações; como sai por cima dos despiques diretos; avalia contenção e desarme; não perde o fio à meada em zonas problemáticas; compensa terreno perdido e é perfeito a posicionar-se seja qual for a circunstância. AS corrige imprecisões automaticamente e é valioso pelo contribu- to individual mas também pela segurança com que divide a intervenção com o parceiro do lado, cumprindo a sua parte na pequena sociedade (dupla de centrais) integrada no contexto mais abrangente e relevante que é a equipa.
Defender é uma etapa menos aclamada do jogo, razão pela qual os seus intérpretes satisfazem paixão e tiram prazer da atividade expressando virtudes que as plateias têm mais dificuldade em valorizar. AS conseguiu ter a habitual fiabilidade anulando, em cenário de altíssimo risco, num palco de excelência, a maior figura da Liga. E fê-lo indiferente ao adversário, igual a si próprio, com inteligência, concentração e quase infalibilidade nos duelos assumidos.
Por dominar essa arte rara, AS debate-se agora com a responsabilidade acrescida de ter amadurecido depressa. É um jovem com armas refinadas e qualidade superior em termos táticos, técnicos e físicos, que se expressa com regularidade, em toda a espécie de palcos (em casa ou fora, em Portugal ou no estrangeiro), frente a todos os adversários – chamem-se Vizela, Sporting, Chaves, FC Porto, PSG, Inter Milão; Essende, Gyökeres, Hector, Evanilson, Messi, Neymar, Mbappé ou Lautaro Martínez.
Com grandes colossos mundiais à porta, dispostos a gastar milhões para contratá-lo, não pode descuidar-se na interpretação do valor da continuidade dos atos para fortalecer o talento – e deve entender que a evolução e o reconhecimento planetário nunca será desculpa para se desleixar e dar por concluído um processo inacabado. AS tem a obrigação de reagir a desastres duros como os do Dragão e interiorizar que o conforto pelo que já obteve serve apenas para consolidar a excelência. Jamais como sinal mentiroso de uma plenitude prematura.