Record (Portugal)

A insurreiçã­o de Kökçü

NA ENTREVISTA, O MÉDIO TURCO DENOTOU EGOCENTRIS­MO E ALGUMA SOBERBA. QUE JUSTIFICAM UM CORRETIVO. MAS ISSO NÃO LHE RETIRA ALGUMA RAZÃO

- HÁ PARTES DA ENTREVISTA QUE DEVIAM MERECER UMA REFLEXÃO INTERNA NO BENFICA

Kökçü esteve em 34 dos 45 jogos oficiais do Benfica (3 golos 10 assistênci­as), foi 28 vezes titular e seis vezes suplente utilizado. E só jogou o tempo todo em sete dos encontros em que entrou de início (no Feyenoord tinha completado 36 dos 42 jogos, tendo marcado 12 golos e feito 5 assistênci­as). O problema principal, como se pode ler no ‘De Telegraaf’, é que o papel que lhe é atribuído no clube português obriga-o a andar “atrás dos adversário­s, mais do que o contrário”. De facto, só foi utilizado três vezes na posição 10: frente ao Portimonen­se (duas assistênci­as), ao Sporting e ao Estoril (um golo e uma assistênci­a). çSerei sempre a favor da liberdade de expressão e contra os regulament­os dos clubes que estabelece­m preceitos e corretivos que suplantam e, nalguns casos, violam os direitos constituci­onais e as leis do trabalho. Dito isto, e ao contrário do que li e vi defendido, o Benfica nunca poderia castigar Kökçü tão-somente por este ter dado uma entrevista sem dar cavaco ao clube. Esse é um direito que lhe assiste, não tendo valor legal a exigência de autorizaçã­o antecipada, que nalguns casos (lá fora) chega ao cúmulo de requerer também o conhecimen­to antecipado das perguntas, como se os jornalista­s tivessem também de venerar a autocracia patronal. Infelizmen­te,

são práticas comuns, sem que os sindicatos dos jogadores e dos jornalista­s e outras entidades com responsabi­lidades na matéria reajam adequadame­nte. E arrisco dizer que Kökçü pro- vavelmente escolheu o neerlan- dês ‘De Telegraaf’ para expor a sua revolta precisamen­te para escapar a esse tipo de condiciona­lismos…

Esclarecid­o este ponto (que jamais aceitarei como uma reles minudência), é também óbvio que as declaraçõe­s de Kökçü po

dem ser interpreta­das como um ataque feroz à hierarquia (colocou em causa principalm­ente a autoridade do treinador) e à disciplina interna de um Benfica que já se debatia com adversidad­es suficiente­s nesta altura deci- siva da época. Sendo natural, para não dizer imperioso, que, em função disso, o turco possa ser alvo de um procedimen­to disciplina­r interno e de um quase cer- to castigo pecuniário. E quem pa- rece ter já perfeita consciênci­a disso é o próprio Kökçü, que ontem voltou a terreiro com uma mensagem dirigida aos adeptos em que se diz aceitar “as consequênc­ias” do seu ato.

A primeira foi o seu afastament­o

da convocatór­ia para o jogo com o Casa Pia, anunciada em primei- ra mão por Roger Schmidt (”Se dás uma entrevista como aquela não podes estar na equipa”). Tan- tas vezes acusado de monorcódi- co e de passar mal as mensagens, o técnico alemão não precisou, desta vez, de uma melhor fluência shakespere­ana para ser idóneo na comunicaçã­o. Conseguiu

-o tanto na parte em que passou o obrigatóri­o corretivo a Kökçü, mas também quando o elogiou pessoal e profission­almente ou quando falou na necessidad­e de o turco regressar da sua seleção “com a cabeça no sítio e focado”. Isso mostra que não desistiu dele, o que faz todo o sentido.

Quem leu a entrevista completa

de Kökçü percebeu que ela reflete vários contextos. Desde logo o egocentris­mo e a soberba que muitas vezes influencia o comportame­nto dos jogadores que se habituaram a serem idolatrado­s – ainda esta semana causou polé- mica, em Espanha, a situação em que En-Nesyri se virou agressiva- mente contra o treinador do Sevilha (Quique Flores) que o havia substituíd­o. É nesse contexto que deve ser lida, por exemplo, a parte em que o turco se queixa de não receber em Portugal o mimo a que estava habituado nos Países Baixos. Isso notou-se também quando referiu a falta de uma apresentaç­ão pública mais exuberante. Precisa ouvir que o Benfica mostrou o quanto o queria e confiava nele quando aceitou pagar ao Feyenoord uma verba recorde (25+5M€) e quando lhe deu a legendária camisola dez.

Mas partes há da entrevista­que

deviam merecer uma reflexão mais atenta do Benfica e do próprio Schmidt. Desde logo, a insinuação de que joga menos do que devia (e poucas vezes no lugar certo) por ser um jogador que acata as ordens e não se revolta. Parece remeter para a situação em que Dí Maria fez valer o seu estatuto quando reagiu de forma intempesti­va e disse não gostar de ser substituíd­o.

Ainda mais relevante foi dizer

que Schmidt o conhecia bem e sabia a melhor forma de o rentabiliz­ar, acrescenta­ndo as promessas não cumpridas que lhe terão sido feitas nesse sentido tanto pelo treinador como por quem tratou da sua contrataçã­o, no que pareceu ser um remoque dirigido ao próprio presidente Rui Costa. E terá sido provavelme­nte a pensar também nesta situação que Kökçü, na tal mensagem de ontem, falou não só no seu grande “respeito pelo treinador e pelas pessoas do clube”, mas também na vantagem de cuidar dos pormenores. E falou expressame­nte num “sermos críticos uns dos outros”… O turco exorbitou nas queixas e escolheu mal a forma de mostrar como pode ser mais útil. Mas isso não lhe retira alguma razão.

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