SÁBADO

A incrível vida da mãe de António Costa

A mãe de António Costa tem uma biografia cheia de peripécias: casou-se aos 20 anos, de vermelho, amou dois homens ao mesmo tempo, recebeu cartas do filho através de Otelo e, aos 84 anos, lembra-se bem disso tudo.

- MARIA ANTÓNIA PALLA Por Maria Henrique Espada

Não é só a mãe de António Costa, primeiro-ministro, com quem faz questão de não falar de política: esteve entre as primeiras mulheres a entrar numa redacção e foi a tribunal por causa da reportagem que pela primeira vez mostrou um aborto. Nasceu em 1933, no Seixal, e a sua avó era uma espécie de feminista antes de o termo ser usado. O meu avô e a minha avó eram republican­os retintos. O meu avô, totalmente anticleric­al. A minha avó não ia à igreja, mas quando foi a campanha do general Norton de Matos pediu a uma senhora que era criada dela que fosse encomendar umas missas pela vitória dele [risos]. Os meus netos, por exemplo, foram, até há pouco tempo, a quarta geração de não baptizados na família.

Q Até há pouco tempo, porque a sua neta baptizou-se recentemen­te. É a opção dela. Como é que encarou essa opção, que na sua família não era o tradiciona­l? Iam ao registo civil, só. Os meus avós foram grandes defensores do Registo Civil. O meu avô foi conservado­r do Registo Civil e mais tarde, fazendo as contas, acho que não registaram o meu pai à nascença, estavam tão crentes de que vinha a República que esperaram que viesse para o ir registar! E agora a sua neta baptizou-se.

É um exercício da liberdade dela. E já não estamos no tempo da fundação da República [risos]. Tenho amigos católicos e não católicos. Foi sempre uma menina com espírito independen­te?

Acho que sim. Vivi em casa dos meus avós até aos 4 anos. Depois a minha mãe queria ter a casa dela e um dos grandes desgostos da minha vida foi separar-me dos meus avós, muito embora eles nos visitassem e passassem temporadas connosco. E com eles eu era feliz. Com os meus pais nem por isso. Por ter uma relação difícil com o seu pai, que era muito rigoroso?

Sendo um democrata, era muito limitador da minha liberdade. Por ser rapariga ou acontecia o mesmo com o seu irmão?

Acontecia também um pouco com o meu irmão, mas comigo era pior. Hoje tenho uma compreensã­o diferente. O meu pai, como todos os republican­os, em geral, teve grandes preocupaçõ­es em dar-nos uma educação laica. Fomos para o liceu francês por isso, eu e o meu irmão. Laica, e com alguma independên­cia em relação ao regime.

Sobretudo entre os professore­s portuguese­s. Foi o meu grande espaço de liberdade. Tínhamos professore­s muito bons, que gostavam muito de nós – de um grupo que éramos melhores alunos. Para mim, foi fundamenta­l. Isso e os meus avós. A minha avó era uma mulher muito decidida, realista, racional, desde muito cedo me deu este conselho: se queres ser livre tens que ter o teu próprio dinheiro. O meu pai discutia tostão a tostão

se lhe pedíamos uns sapatos! Nunca nos limitou o dinheiro para os livros. Agora, sapato ou vestido, “então já tens tantos...” E ele tinha milhentos, era um bocado dandy. Quando terminou o Liceu Francês foi para Letras, conheceu o Orlando da Costa e casaram muito cedo, para padrões actuais. Era também uma tentativa de fuga ao controlo do seu pai? Eram várias coisas. Primeiro, eu gostava dele. Depois, ele tinha estado preso por razões políticas, seis meses, em Caxias. Eu ia lá todos os dias mas não mo deixavam ver. Só uma vez, no Natal. E acho que foi a época mais apaixonada da minha vida. Escrevíamo-nos todos os dias. Como é que uma miúda de 19 ou 20 anos, no início dos anos 50, tinha a disciplina e se desenrasca­va para o ir visitar? Às vezes quando não tinha dinheiro pedia boleia até Caxias e depois subia àquele monte até lá acima... As raparigas que estavam no primeiro andar do forte começavam a cantar uma cantiga: “Ó Toninha, ó cara linda, não saias de noite à rua, que as estrelas nunca viram cara linda como a tua” [risos]. E então ele vinha à janela e por entre as grades acenava-me. E decidiram logo casar?

Quando o Orlando saiu, por volta de Abril, Maio, os meus pais, sobretudo o meu pai, começou a restringir muito a minha liberdade, de sair à noite, ou ir ao cinema com ele. Aceitei isso muito mal. Era uma prova de desconfian­ça do meu pai que eu não merecia. Por isso e porque pressentía­mos que ele podia ser de novo preso... e ele estava sozinho em Portugal, a família estava na Índia, em Goa. Eu era a única pessoa que estava em condições de lhe prestar assistênci­a. Como é que foi dizer ao seu pai?

Eu disse-lhe: “Eu daqui a um mês caso-me.” [Risos] E como foi a reacção?

Péssima. Disse “estou totalmente contra”. Porque ainda não acabaste o curso, mas olha, como daqui a uns meses vais fazer 21 anos e já me disseste quando fizesses 21 anos fazias o que querias, olha... outro que te

ature. Como o Orlando, que já estava licenciado mas ainda não tinha trabalho e nem seria fácil encontrá-lo por razões políticas, e eu queria continuar a estudar propus ao meu pai que íamos comer a casa deles mas vivíamos fora, na nossa. Tinha actividade política, o seu namorado, depois marido, esteve preso por causa da ligação ao PCP. Chegou a ir a reuniões do MUD (Movimento de Unidade Democrátic­a) Juvenil, mas manteve uma reticência à partida. Porquê? Logo à partida, sim. No Liceu Francês discutíamo­s todas as questões, não havia limite. Quando fui a reuniões do MUD percebi que se punha um tema à discussão mas a resposta já vinha de outro sítio. Do PCP. O seguidismo irritava-a?

Há uma situação que achei ridícula. Havia pessoas do PCP na Faculdade de Letras e eu dava-me com eles. Mas só havia três alunos, eu, uma colega minha e um outro rapaz, que já era comunista, mas eu não sabia, que nos dispúnhamo­s a distribuir papéis e a recolher assinatura­s. Porque os que pertenciam ao PCP achavam-se muito importante­s no partido e não podiam arriscar a liberdade deles! Mas o que me interessav­a era o que vinha nos papéis. Se fosse pela pela liberdade, eu distribuía. O regime incomodou-a? Senti a repressão por parte do director, que era o comissário-geral da Mocidade Portuguesa. As minhas relações com ele eram péssimas e ele de vingança nunca me deu isenção de propinas nem direito a bolsa de estudo, a que teria direito pelas notas. Teria dado muito jeito para a minha economia doméstica, que era muito restrita. Os pais do Orlando continuara­m a mandar a pensão da Índia, só que agora tinha de dar para dois. Mas éramos felizes. Era muito descontraí­da. Casou-se de vermelho, com um vestido de uma amiga, de sapatos rasos e sem maquilhage­m. O que é que isso significou para si? Ah, eu teria horror a pôr um vestido branco de noiva. Era uma exibição pública de uma coisa que dizia respeito à minha intimidade. Disse que foram tempos felizes. Mas também passou por um momento doloroso, quando morreu a sua primeira filha [com 3 anos, num acidente]. Não falemos disso, peço-lhe [emociona-se]. Com certeza. Pensava trabalhar, nessa altura?

Quando acabei a faculdade, achei que o destino de alguém com um curso como o meu era ser professora. E não era isso que eu queria. Sonhava com uma coisa impossível, desde miúda. Teria 8 ou 10 anos quando o meu avô me levou ao jornal República e fiquei fascinada. Mas era um mundo exclusivam­ente masculino. E quando acabou o curso continuava igual. Sim. Nem me passava pela cabeça que pudesse ser jornalista – não era mesmo possível. Não era. Por outro lado, o Orlando, com a sua formação de indiano brâmane, gostava muito de uma mulher dona de casa. Fiquei em casa. Até que, por razões que não tiveram a ver com o termos deixado de gostar um do outro... tivemos um desgosto enorme na nossa vida e isso levou a que cada um procurasse um caminho diferente. Dois desgostos somados é muito difícil. Quando nasce o seu filho, conta no livro Viver pela Liberdade, que escreveu com Patrícia Reis, que o “recebeu em lágrimas”. Foi um momento de catarse? Foi uma renúncia ao que estava para trás. Separa-se pouco depois, porque percebe que estava apaixonada por Victor Palla. É. Que foi padrinho do António. Eu hoje vejo estas coisas com outros olhos. Acho que se pode gostar de duas pessoas de maneira diferente. E se isso tivesse sido possível naquele tempo, era isso que eu queria. Eu queria os dois. Sempre gostei muito do Orlando, mas já não era paixão. Já estávamos casados há nove anos e tínhamos passado coisas muito boas e muito más. O Victor acompanhou-me muito durante a gravidez do António, e descobrimo­s que estávamos apaixonado­s. Hoje percebo que as grandes paixões não dão bons casamentos [Risos]. Porque não são conjugávei­s com a conjugalid­ade, o diaa-dia, um bebé para tratar. Porque eu andei sempre com o meu filho atrás, estava à frente de tudo. Como é que o seu primeiro marido aceitou a separação?

De forma civilizada. Mas custou-me imenso separar dele. Coisa que o Victor Palla não viu com muito bons olhos e tornou difícil um casamento apaixonado com ele. Desentende­mo-nos em várias coisas... uma Q

Q delas foi que ele queria deixar a arquitectu­ra e dedicar-se à pintura. E ele tinha três filhos de um primeiro casamento, eu tinha o meu... Era pouco realista?

Era. Não era um bom ambiente para educar o meu filho. Então saímos. Fica mãe solteira, com um filho pequeno, nos anos 60. É aí que percebe que tem de trabalhar? Tive um grande amigo, o arquitecto Manuel Tainha, da direcção do sindicato dos arquitecto­s, onde achavam que o Victor era maluco e que eu precisava de ajuda. Percebi o conselho da minha avó. Como chegou ao Diário Popular?

Tinha um grande amigo na faculdade, colega do Orlando, o Jacinto Baptista, que chegou a director. Comecei a trabalhar em 1966 como colaborado­ra da página literária. Mas ainda fora da redacção.

Ah, claro, nem se podia entrar! Era um contínuo que ia chamar o Jacinto Baptista e as pessoas que colaborava­m ficavam ali à espera. Era sagrado, aquilo era só deles. Os nossos colegas achavam que já não poderiam dizer palavrões e que elas eram muito frágeis... Eu escrevia para a página literária mas para ser jornalista era preciso escrever reportagen­s, mas eles não davam reportagen­s para fazer a não jornalista­s! E então pensei, “tenho de inventar uma para fazer”. Propus ao dr. Balsemão, que aceitou, ir fazer uma reportagem ao Brasil sobre o surto de criativida­de em todas as áreas: escritores novos, actores novos, músicos, tudo. E como é que chega à redacção?

Escrevi essa reportagem ainda sem

estar lá. Os mais novos sobretudo gostaram muito. Entretanto o dr. Balsemão foi o primeiro e único, acho, a abrir um concurso para a admissão de jornalista­s na redacção. Concorremo­s 20 e tal, dos quais três mulheres. As três entraram. E correu bem, a chegada?

Houve um acordo entre as chefias de que o trabalho seria distribuíd­o como aos homens. E foi. Uma vez houve um ciclone em Lisboa, fomos todos chamados à redacção às 5 da manhã e o chefe de reportagem pôs 20 e tal pessoas na rua. A minha função era contar as chaminés que tinham caído [risos]. Vi-me às 6 da manhã, em cima de um telhado na rua da Madalena, a contar... Balsemão contratou-a e depois despediu-a.

Eu estava habituada a ir para Paris como hoje não vou a Almada! Aguentava 36 horas de comboio. Lá respirava-se. Agora tenho outra idade, não gosto de viajar sozinha, tenho medo que me dê uma pataleta qualquer. Tinha feito a reportagem no Brasil, o concurso, não tinha tido férias do sindicato, estava num estado de exaustão... e só tinha um dia de folga, o sábado. Estava tão cansada que o médico me deu baixa. E eu pensei, “tanto descanso aqui como em Paris”. Tinha lá amigos, a filha mais velha do Victor Palla, e outros. E tinha combinado com o dr. Balsemão fazer um balanço, um ano depois, sobre o Maio de 68. E fui. O dr. Balsemão não apreciou assim tanta iniciativa?

Não. O líder do movimento estudantil, o Jacques Sauvageot, no dia seguinte a eu ter chegado a Paris, ia presidir pela última vez à assembleia geral da união geral dos estudantes. Passou-me o cansaço todo! Toma, lá vai ela. Telegrafei, que o telefone era muito caro, “reportagem em curso” e ele na volta respondeu: “Está despedida.” Foi um desgosto. Apaixonei-me pelo jornalismo. Os meus amigos disseram-me, “já que estás aqui acabas”. Entreviste­i o Jacques Brel, a Françoise Giroud, o Godard... Mas quando volta, está desemprega­da. E depois como é que foi parar ao Século Ilustrado? Um dos administra­dores tinha sido meu colega no Liceu Francês. Apresentou-me ao director, o Francisco Mata, e comecei por fazer reportagen­s a 250 escudos cada uma. Era muito pouco. Mas depois, no Século

Ilustrado, foi onde fui mais feliz. Foi a todo o lado. Até aos Bijagós foi fazer reportagem e isso na altura devia ser o fim do mundo. Mas havia patrões a sério. Eu tinha conhecido um etnólogo, o Vítor Bandeira, que pensava haver ali um matriarcad­o. E havia uma corrente na Antropolog­ia que defendia que quanto menos as pessoas tinham, mais felizes eram... Disse ao patrão que ia “à procura da felicidade” e ele achou suficiente [risos]. E o Vítor Bandeira foi com a mulher e a filha e organizou uma expedição à século XIX. E quem estava lá, no gabinete do Spínola, a receber os visitantes, era o Otelo Saraiva de Carvalho... Recebeu-vos bem?

O homem pode ser maluco, mas foi

“Telegrafei ao dr. Balsemão, ‘reportagem em curso’, e ele na volta respondeu: ‘Está despedida.’Foi um desgosto” “[António Costa] mandava cartas para Bissau, ao cuidado do senhor capitão Otelo Saraiva de Carvalho”

tão simpático: nós tínhamos quatro ilhas para ir e ele pôs o barco que fazia a ligação à nossa disposição, o Pexixe. Para os pretos era igual, partir às 9 da manhã ou às 5 da tarde. O Pexixe saía quando saía. Também nos deu umas camas de campanha e um barco para as nossas andanças dentro das ilhas. Ele percebeu bem, porque é muito inteligent­e e tem sensibilid­ade, que a minha grande preocupaçã­o era ir para ilhas onde nem rádio havia e ficar sem notícias do meu filho. Combinámos, e a minha mãe e ele [António Costa] mandavam cartas para Bissau, ao cuidado do capitão Otelo Saraiva de Carvalho, e ele arranjava um avião pequenino e mandava um pacote cá para baixo com outras coisas e com as cartas. Estivemos lá um mês e uma semana. Quando voltámos à ilha principal telefonámo­s ao Otelo. Ele percebeu que eu queria vir passar a Páscoa a Lisboa, estava morta de saudades do meu filho. Mas formos a tanto sítio. Ao Carnaval do Brasil, a Angola... E corri o país todo. Casou-se novamente a seguir ao 25 de Abril. Teve de preparar o seu filho para a mudança? Entre eles não podia ter corrido melhor. Vivi nove anos sozinha com o meu filho, a partir do 4 anos dele. A partir do momento em que ele teve tino, discutia tudo com ele. Acha que isso o ajudou a, hoje, saber negociar?

Bem, ele aprendeu a negociar muito cedo! Conheci o Manel [Pedroso Marques, o actual marido] quando ele voltou do exílio. Começámos a gostar um do outro e rapidament­e pensámos viver juntos. Participei ao meu filho. Ele disse-me: “Ó mãe, estás-me a dizer isso pela primeira vez, mas eu já tinha percebido.” E sugeriu: “Olha mamã, convidamos para ele vir cá ficar um fim-de-semana e depois logo vemos.” O teste correu bem?

Ficou aprovado. Entretanto mandaram-me para África e eles ficaram sozinhos. Ele ficava em casa da minha mãe, mas ia a casa todos os dias e o Manel ainda hoje se lembra das massas que ele fazia. Além de saber fazer massas, houve outros aspectos em que não lhe deu a educação estereotip­ada. Dava-lhe camisolas cor-de-rosa, uma boneca. Foi bem-sucedida? Isso era ele muito pequeno e não fui nada bem-sucedida. Nada, nada... comprei um bercinho, para deitar a boneca. Ele queria era carrinhos. Em 1976, a reportagem sobre o aborto na RTP torna-se um marco na sua carreira. Agitou o País. A questão do aborto começou a surgir nos EUA, a seguir à guerra do Vietname, e também em França. Nós fomos sabendo disso. Com o 25 de Abril, na lei fez-se tudo o que era preciso para as mulheres, mas faltava um direito, o aborto. A reportagem filma um aborto e até mostra um frasco com o produto do mesmo. Tinha a noção da reacção que poderia provocar? Iniciámos o programa Nome Mulher em Agosto de 1974. Foi imaginado pela Antónia de Sousa, que me convidou

para participar. Fizemos programas sobre o divórcio, as mães solteiras, tudo o que fazia parte do universo feminino. Em 1975 fizemos um programa “vamos falar de aborto” e no ano seguinte reunimos técnicos, médicos, enfermeiro­s, e resolvemos fazer um filme sobre o aborto. Isso era feito por uma produtora externa. Naquela altura começou a haver problemas, durante o PREC, os intelectua­is eram traidores do povo, os trabalhado­res manuais não. Daí resultou que naquela equipa, que eram umas 15 pessoas, nós fazíamos o script e participáv­amos nas entrevista­s, mas não na montagem. Aí era com o montador, já não era o intelectua­l. Mas foi ao local?

Sim. Tinha-se criado na Cova da Piedade uma clínica em que se faziam abortos, fomos lá. Há uma que decide abortar e resolveram... O que acontece é que essa cena não foi decidida por mim, acho eu. Também podia ter sido, mas não com aquela crueza. Talvez tenha concordado – eu fiz essa parte toda da clínica –, mas depois mete-se aquela cena de irem para a cozinha da senhora fazer o aborto. E vê-se, com pormenores... lavar a mesa... fazia-se aquilo com uma bomba de bicicleta virada ao contrário... depois no final, recolheram a massa retirada do útero, que se via perfeitame­nte que eram uns farrapos, e meteram num frasco e fizeram assim [faz um gesto de abanar um frasco], bem, bem para se ver, foi isso que os pôs malucos. Porque era a destruição da campanha da Igreja, que mostrava fetos de seis meses como fosse isso que estava em causa. Houve queixas, do CDS, de médicos, da Igreja... A RTP, de que o seu marido era administra­dor, suspendeu o programa. Logo. Não se zangou com ele? Não, a situação dele era difícil. Foi a julgamento, que se arrastou. Isso foi duro, preocupava-a?

Foi até 79. Três anos. Em que eu às vezes pensava, se for presa faço uma reportagem na prisão. Mas ficava preocupada pelo meu filho. A pena era de 2 a 8 anos de prisão. Sempre disse “sou

“Comprei-lhe [a António Costa]um bercinho para deitar a boneca. Ele queria era carrinhos” “Depois mete-se [na reportagem] aquela cena de irem para a cozinha da senhora fazer o aborto” “Toda a gente da minha geração fez [um aborto]. Quem começou a sua vida sexual antes da descoberta da pílula, ou tinha meninos, ou numa altura ou noutra...”

responsáve­l pelo programa porque sou a autora”. E daí não saí. Fui acusada de ofensa à moral pública, incitação ao crime e exercício ilegal da Medicina. E nem assisti à filmagem. Mas nunca disse. Foi uma decisão de uma realizador­a. E não condeno. Fui absolvida. Empenhou-se nos movimentos pela despenaliz­ação do aborto e já admitiu que também fez um. Quando lhe fazem a pergunta, ainda a incomoda? Não. Toda a gente da minha geração fez. Quem começou a sua vida sexual antes da descoberta da pílula, ou tinha meninos, e tinha famílias numerosas, ou numa altura ou noutra... vocês não têm essa percepção. Na luta pela despenaliz­ação do aborto esteve mais com pessoas de esquerda. Mas noutra causa sua, Angola e a UNITA, ficou amiga de muita gente de direita. O que eu adorei. A Maria José Nogueira Pinto, de quem se tornou amiga, o marido, Jaime Nogueira Pinto... E muitas que hoje não são de esquerda nem de direita. Serão conservado­ras. Interessa-me é se as pessoas são boas ou não. Nunca foi ingénua quanto ao processo de paz. Quando foi como observador­a às eleições de 1992 levou roupa velha na mala para o caso de ter de fugir de Luanda... Isso foi uma tontice minha e da Zezinha Nogueira Pinto. Imaginar que podíamos fugir de Luanda! Era inútil estivéssem­os em que toilette estivéssem­os [risos]. E estas também não foram eleições livres. Uma eleição em que a oposição não vai à televisão, em que não há debates, em que os cadernos eleitorais... A reacção portuguesa também é

uma desilusão? A reacção portuguesa é miserável. É por isso que a minha relação com o PS é um bocado... Mas o seu filho é líder do PS... Fala de política com ele, ou é tabu?

Não, nunca. É uma opção, minha e dele. E eu vejo muito pouco o meu filho, o meu filho não tem tempo para andar a visitar a mãezinha. Sigo as coisas dele com grande interesse, mas também seguiria se fosse outra pessoa que lá estivesse. Há pessoas que me abordam na rua e me dão os parabéns pelo meu filho. Geralmente mulheres. Acho que sim, que tive sorte como mãe. Mas acho que eduquei bem o meu filho e isso é o meu orgulho na vida. Visitou José Sócrates quando esteve preso. Iria visitá-lo de novo?

A minha simpatia pelo Sócrates cresce em face da forma como tem sido tratado. A justiça portuguesa protege mais os bens materiais do que as pessoas. Para mim é mais grave um crime de pedofilia do que um crime de corrupção. Não sei se tirou se não tirou, mas nada desculpa a forma como tem sido tratado. Em nenhum país um ex-primeiro-ministro que foi votado por três milhões de pessoas seria tratado desta maneira malcriada e grosseira. Não se fala de uma única coisa boa que tenha feito. Nota-se que é uma avó que gosta muito dos netos. Acha que eles têm noção destas histórias da sua vida, ou para eles é só a avó? Não têm, não têm. Para eles sou só a avó que sabe muito bem fazer bifes com batatas fritas. E eles trazem amigos para comer as batatas fritas da avó! Gosto imenso dos meus netos, façam o que fizerem na vida. Estarei sempre com eles, como estarei com o meu filho. Isso não me impede de julgar o que acho bem e mal.

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 ??  ?? 1 Na manifestaç­ão do 1 de Maio de 1974, no grupo do sindicato dos jornalista­s (foi a primeira mulher a integrar a direcção deste) acompanhad­a pelo filho. A foto é de Alfredo Cunha
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No Liceu Francês, em 1946, no Príncipe Real. É a primeira à direita,...
1 Na manifestaç­ão do 1 de Maio de 1974, no grupo do sindicato dos jornalista­s (foi a primeira mulher a integrar a direcção deste) acompanhad­a pelo filho. A foto é de Alfredo Cunha 2 No Liceu Francês, em 1946, no Príncipe Real. É a primeira à direita,...
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No Bairro Alto, quando ainda trabalhava no Século Ilustrado, em 1976. A foto é de Alfredo Cunha
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Maria Antónia Palla fotografad­a em sua casa, no dia 26 de Outubro
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Em casa, na Lapa, onde vive há vários anos com o marido

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