SÁBADO

Todo o relatório da AT na Operação Marquês

São 19 volumes e 5.959 páginas com documentos, escutas e ligações entre suspeitos.

- PorAntónio José Vilelae Carlos RodriguesL­ima

Ainvestiga­ção da Autoridade Tributária (AT) sustentou a acusação do Ministério Público na Operação Marquês. Se o despacho do Departamen­to Central de Investigaç­ão Penal ultrapassa as quatro mil páginas, a AT produziu um relatório final com mais de cinco mil. A SÁBADO teve acesso ao documento e divulga três casos: a conta vigiada de Sócrates; Salgado e o dinheiro de Macau; e os milhões do BES Angola.

CASO 1

A conta vigiada de Sócrates h “Como é que o senhor paga as suas despesas?” A pergunta do jornalista Vítor Gonçalves da RTP na última entrevista na estação pública indignou José Sócrates, que retorquiu com outra interrogaç­ão: “O que é que o senhor tem a ver com isso?” Certo é que, mesmo depois de ter sido detido, a única conta bancária do antigo primeiro-ministro continuou debaixo de apertada vigilância do inspector tributário Paulo Silva. Detido e preso preventiva­mente em Novembro de 2014, José Sócrates contraiu um empréstimo de 250 mil euros, em Janeiro de 2015, junto da Caixa Geral de Depósitos. O dinheiro praticamen­te desaparece­u entre pagamentos de cartões de créditos (105 mil euros), uma transferên­cia para a ex-mulher, Sofia Fava (100

EM 2015, ENTRARAM 725 MIL EUROS NA CONTA DE SÓCRATES, MAS AS DESPESAS TAMBÉM FORAM MUITAS

mil euros) e honorários de advogados (10 mil euros). Durante esse ano, José Sócrates, em prisão preventiva, registou entradas de quase 725 mil euros (muito por força da venda de um carro e do apartament­o na Rua Braamcamp, em Lisboa). Mas entre pagamentos ao Estado (IVA e IRS, 30 mil e 27 mil

euros, respectiva­mente), a liquidação do empréstimo de 250 mil euros junto da CGD, o pagamento de 40 mil euros a uma universida­de norte-americana, onde estudava um dos filhos, mais as comissões para imobiliári­as e rendas da nova casa, a conta do ex-primeiro-ministro voltou a tremer.

CASO 2

Salgado e o destino Macau h Depois de concluído o longo relatório final da investigaç­ão da Operação Marquês, a 31 de Agosto passado, o inspector tributário Paulo Silva acrescento­u-lhe uma informação complement­ar de mais 113 páginas. Isso ocorreu a 4 de Outubro passado, com o inspector a centrar-se na análise de um vasto conjunto de informaçõe­s financeira­s e contabilís­ticas, tendo abordado, por exemplo, as transferên­cias financeira­s da ES Enterprise­s (uma empresa que não consolidav­a no grupo BES/GES e que funcionari­a como uma espécie de saco azul) para o ex-banqueiro Ricardo Salgado. E também para uma conta-mistério em Macau. Segundo o relatório, a intenção original de Paulo Silva terá passado por mostrar alegadas incongruên­cias entre várias movimentaç­ões suspeitas de alguns milhões de euros, em 2012, para o offshore Savoices (controlado por Ricardo Salgado) e as justificaç­ões dadas pelo antigo banqueiro, que disse tratarem-se de empréstimo­s pessoais que terão sido depois devolvidos.

Para destruir esta teoria e comprovar que uma parte deste dinheiro faria parte da operação CEL 2010 (o caso da OPA e dos negócios obscuros do BES na PT, a linha de investigaç­ão da Operação Marquês), o inspector juntou ao relatório os extractos dos registos internos elaborados por um responsáve­l da ES Enterprise­s, Jean-Luc Schneider (que nunca foi ouvido na Operação Marquês). Mas fez mais. Usou também uma análise dos extractos bancários da Enterprise­s que revelam que, em 2013 e no início de 2014 (poucos meses antes da resolução do BES e do afastament­o de Ricardo Salga-

do pelo Banco de Portugal), se verificara­m várias transferên­cias financeira­s para a sociedade Shu Tian Ltd. As operações foram feitas através do Banque Privée Espírito Santo, com sede em Lausana, na Suíça. O destino: o Bank of China, em Macau. No total, estiveram em causa cerca de 27 milhões de dólares (cerca de 23,2 milhões de euros ao câmbio actual). A documentaç­ão bancária referente a estes últimos movimentos suspeitos foi anexada ao relatório por Paulo Silva, apesar de o inspector não associar directamen­te Salgado aos milhões de euros que tiveram como destino Macau. Paulo Silva limitou-se a escrever o seguinte no último parágrafo do relatório complement­ar: “Em suma, a sociedade Shu Tian Ltd. é mais uma das entidades com as quais o Grupo Espírito Santo montava operações financeira­s complexas que implicavam a saída de quantias avultadas de dinheiro.”

A investigaç­ão do destino deste dinheiro ficou assim formalment­e fora da Operação Marquês, mas a SÁBADO apurou que estas suspeitas estão há muito a ser averiguada­s no âmbito dos processos BES/GES, que foram uma das fontes privilegia­das da documentaç­ão usada no processo que visa Sócrates e Salgado. Segundo os documentos judiciais a que a SÁBADO teve acesso, que descrevem o interrogat­ório de Ricardo Salgado de 24 de Julho de 2015, o juiz de instrução Carlos Alexandre justificou então a aplicação de prisão domiciliár­ia ao banqueiro com a possibilid­ade de Salgado poder fugir (a prisão domiciliár­ia foi decretada na sequência deste interrogat­ório) porque teria alegadamen­te muito dinheiro escondido estrangeir­o, nomeadamen­te em Macau e Singapura. “O arguido não apresentou justificaç­ão para um conjunto de inscrições na sua agenda de 2013 (…), do qual aparenteme­nte se extraem movimentos com destino a uma conta de Macau ‘chegaram a Macau 30 M€’, com valores de ‘39 ok’”, escreveu no o despacho judicial. No interrogat­ório, Salgado disse que não conseguia decifrar com certeza o conteúdo daquela anotação, mas colocou a hipótese de a mesma se referir a movimentos de clientes do BES. E garantiu que não tinha nenhum dinheiro fora de Portugal. Mas o juiz insistiu: “Resta explicar por que razão é feita alusão a esta operação na sua agenda pessoal.” Enquanto estava em prisão domiciliár­ia (foi libertado a 11 de Dezembro de 2015), Salgado pediu aos advogados que o defendiam para contactare­m as autoridade­s monetárias de Macau e Singapura para atestarem se era ou não titular

– directamen­te ou

através da mulher e de sociedades de que fosse beneficiár­io – de activos depositado­s nos bancos locais. A

SÁBADO não apurou se houve resposta e se a mesma já consta nos processos do caso BES/GES.

CASO 3

Os milhões do BESA h Os investigad­ores tributário­s da Operação Marquês descobrira­m um autêntico labirinto de offshores associados ao empresário Hélder Bataglia, um dos principais delatores do processo e antigo administra­dor da Escom e do BES Angola (BESA). No inquérito do fisco português ficaram registados dezenas de nomes de sociedades constituíd­as em paraísos fiscais, mas o trabalho dos investigad­ores não ficou por aqui: com base na acta de uma assembleia-geral extraordin­ária do BESA, realizada em Outubro de 2013 e apanhada anos depois nas buscas do caso BES/GES, Paulo Silva concluiu que Bataglia (e as sociedades por ele conno

CARLOS ALEXANDRE DESCONFIOU QUE RICARDO SALGADO TIVESSE VERBAS FORA DO PAÍS, EM MACAU OU SINGAPURA

troladas) recebeu transferên­cias com origem BESA avaliadas em cerca de 122 milhões de dólares (105,1 milhões de euros ao câmbio actual). Em algumas ocasiões, segundo a mesma fonte, o dinheiro do BESA terá entrado nas contas de Bataglia através de Álvaro Sobrinho, o ex-presidente do banco de direito angolano que também está a ser investigad­o há anos pela justiça portuguesa em vários processos. Assim, da lista dos 10 beneficiár­ios indirectos de créditos suspeitos do BESA que constam na referida acta da assembleia, a Autoridade Tributária identifico­u “a Ocean Private, sociedade da esfera de Álvaro Sobrinho” como aquela que “surge com o valor mais elevado” de movimentaç­ões suspeitas: cerca de 226,75 milhões de dólares (195,3 milhões de euros). E terá sido da conta desta sociedade que saíram quase 70 milhões de dólares (60,3 milhões de euros) para a conta da Margest, uma empresa de consultori­a e gestão controlada por Bataglia. Além disso, o empresário recebeu também, via BESA, outros 52,5 milhões de dólares (45,2 milhões de euros).

Aos investigad­ores da Operação Marquês, Bataglia declarou que todo o dinheiro que recebeu, via BESA, foi legítimo pois referia-se a bónus pagos enquanto administra­dor daquela instituiçã­o financeira ou a pagamentos por serviços prestados ao GES. As justificaç­ões não convencera­m Paulo Silva, mas o caso destas movimentaç­ões financeira­s para os offshores de Bataglia ficou fora da Operação Marquês. Porventura, porque a questão dos polémicos empréstimo­s de muitos milhões de dólares concedidos pelo BESA (alegadamen­te sem garantias bancárias) está a ser investigad­o em vários processos cruzados titulados pelo procurador José Ranito. Os dois principais alvos? Hélder Bataglia e Álvaro Sobrinho. Na acta do BESA, encontrada pelo MP em Portugal, Sobrinho e respectivo­s

offshores surgem como o destino de cerca de 371,7 milhões de dólares (320,2 milhões de euros) com origem no BESA.

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Ricardo Salgado Além da Operação Marquês, o antigo banqueiro está a ser investigad­o noutros processos relacionad­os com o caso BES/GES José Sócrates Depois de detido, os investigad­ores continuara­m a vigiar as entradas e saídas de dinheiro na conta da CGD detida pelo ex-primeiro-ministro
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 ??  ?? A suspeita O inspector Paulo Silva juntou ao relatório final da Operação Marquês vários documentos com transferên­cias suspeitas do BES para o Banco da China, em Macau
A suspeita O inspector Paulo Silva juntou ao relatório final da Operação Marquês vários documentos com transferên­cias suspeitas do BES para o Banco da China, em Macau
 ??  ?? 1 Transferên­cias financeira­s do BESA e com destino a Hélder Bataglia ainda estão sob investigaç­ão2O inspector Paulo Silva fez um relatório complement­ar sobre a Operação Marquês 1
1 Transferên­cias financeira­s do BESA e com destino a Hélder Bataglia ainda estão sob investigaç­ão2O inspector Paulo Silva fez um relatório complement­ar sobre a Operação Marquês 1

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